Diário de Notícias

Revistas cor- de- rosa

- HUGO GONÇALVES Escritor e jornalista

Devemos suspender aquilo em que acreditamo­s, bem como os nossos princípios, porque faz calor, estamos de férias, vamos à praia e comemos mais peixe grelhado? Pode até ser aceitável que nos apeteça, durante um par de semanas, não saber que crianças morrem na Síria. Todos temos direito a um alívio da engrenagem inelutável do planeta e do imperfeito comportame­nto dos homens, mas há limites para o estado de alienação e para a apetência para a estupidez.

Há alguns anos que deixei de folhear as revistas cor- de- rosa ( que prefiro chamar, daqui em diante, de revistas cor de merda, esperando ser assim mais fiel ao seu conteúdo), e nunca fui vulnerável aos argumentos “é só para passar o tempo”, “para me rir um bocado”, “isto não faz mal a ninguém”. Mas faz. Em primeiro lugar, além de danificare­m a língua portuguesa e todas as árvores cortadas para fazer papel, estas publicaçõe­s mentem, descarada e impunement­e, compram fotos amadoras de telemóvel, tiradas à socapa e com má- fé, e ainda que os seus “jornalista­s” tenham carteira profission­al, são uma versão atualizada das alcoviteir­as, protagonis­tas do pequeno poder dos porteiros de discoteca com aspirações a Tony Soprano.

As notícias do internacio­nal são escolhidas de acordo com a qualidade das fotos de agência ( mulheres bonitas) ou com a esqualidez das mesmas ( a bebedeira de um famoso). As legendas e os textos são muitas vezes inventados, sem qualquer matéria factual.

Quando se trata de atualidade nacional, trabalham um pouco mais, vão aos eventos patrocinad­os por marcas, em que atrizes de novela são pagas para sorrir sempre que um flash dispara. Os seus fotógrafos- abutres escondem- se nas dunas da praia ( que triste profissão) para conseguir captar um par de mamas célebre ou insinuar a homossexua­lidade de alguém usando eufemismos tão tolos como repetidos ad nauseam – “Foram vistos em clima de cumplicida­de.”

Na praia, ouvi um grupo que comentava a hospitaliz­ação de uma jornalista, a quem morreu o filho no ano passado, dedicando- se a fazer juízos ou alegando “ela pôs- se a jeito”. Não se trata apenas de voyeurismo sem danos. E mesmo aqueles que se põem a jeito – parece, por exemplo, que há famosos que combinam com os papa- razzi –, não cancelam a obrigação, de quem faz jornalismo, de ter cuidado com aquilo que escreve. Porque assinar um texto numa revista não é o mesmo que ser inquisidor do Santo Ofício. Ter acesso a certas pessoas não é o mesmo que fazer parte da vida íntima dessas pessoas.

O que as revistas cor de merda fizeram com essa jornalista, que aparece agora em todas as capas, é a exploração do luto e do desespero, a falta de compaixão e respeito pelo outro, a vontade de espremer para sair mais sangue e lágrimas e desgraça. E toda essa porcaria transfere- se para aqueles que, no consultóri­o do dentista ou no areal, suspendem a decência e se lambuzam na miséria glamorizad­a, em páginas tão brilhantes e cortantes que nem servem para limpar o rabo.

Se fico intrigado por saber como esses jornalista­s, editores e fotógrafos dormem à noite, também me espanta que os leitores justifique­m ser cúmplices de algo sujo. Lixo vai haver sempre, já se sabe, e quem é que abdica totalmente do prazer culpado de comer um Big Mac, usar roupa barata feita por operários explorados ou participar numa conversa sobre o divórcio de um casal hollywoode­sco? Poucos serão monges austeros da virtude, mas, então, que os leitores dessas revistas sejam mais como os defensores da tourada que, estando completame­nte errados, celebram orgulhosam­ente o sangue e o sofrimento com que regozijam. Comprar e ler essas publicaçõe­s, mesmo na dormência do verão, não é apenas entretenim­ento, é uma cobardia preguiçosa.

Embora com rodagem suficiente para saber evitar certos lugares, fui bater com as costas num desses bares da moda do Algarve, e percebi que estava numa espécie de materializ­ação das revistas cor de merda: ex- mulheres de futebolist­as, estrelas de reality show que ainda não perceberam que nenhum homem deveria usar gel depois dos 13 anos, um serviço arrogantem­ente mau e garrafas de champanhe que eram levadas para a mesa com um pauzinho flamejante, porque o exibicioni­smo parolo é mais um acessório a juntar ao carro e ao relógio gigante.

É certo e sabido que, tal como o universo, a estupidez humana se expande continuame­nte. Mas a leveza do verão não é o mesmo que uma licença para a burrice e o mau carácter; abraçar a efemeridad­e do prazer não exige um estilo de vida tão falso e pomposo como uma carteira Fendi dos chineses.

No dia seguinte, entrei numa estação de serviço e reparei numa prateleira vazia: as revistas cor de merda tinham esgotado. Não foi preciso muita investigaç­ão. Encontrei- as todas na praia. P. S. – Obviamente, e apesar da diferença do formato, o Correio da Manha ( sem til) e a Correio da Manha TV fazem parte da mesma espécie.

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