Contra o Estado Islâmico a Índia tem o “homem- míssil”
Nos mapas que circulam na internet sobre as ambições territoriais do Estado Islâmico surgem sempre a Península Ibérica e a Índia. Mas se o antigo Al- Andaluz deixou há séculos de ter população islâmica tirando a que chega por via da imigração, já o território que foi o do Sultanado de Deli e depois o do Império Mogul conta ainda hoje com 180 milhões de muçulmanos, a ponto de a Índia ser o terceiro país com mais seguidores de Alá. E é por isso que um documento do Estado Islâmico com um plano para atacar a Índia mereceu ser notícia esta semana no USA Today. O jornal recorreu a um perito de Harvard para obter uma tradução credível para o inglês e conseguiu que três agentes da secreta americana garantissem a fiabilidade do texto, tendo em conta a linguagem e o tipo de ameaças.
Mas se jornais como o Times of India reproduziram a história, a verdade é que a reação indiana tanto nos media como nos meios políticos foi de tranquilidade; ao ponto mesmo de o governo ter classificado de “lixo” o documento encontrado nas áreas tribais paquistanesas, escrito em urdu e apelando à criação de um exército terrorista no Afeganistão e no Paquistão para atacar a Índia e “criar um fim do mundo, tipo Armagedão”.
Que a Índia, com o terceiro maior exército do mundo e potência nuclear, não tema o Estado Islâmico do ponto de vista militar, mesmo que a partir dos seus bastiões sírio e iraquiano este tente contaminar partes do Afeganistão e do Paquistão, é óbvio. Porém, surpreende a confiança que os governantes de Nova Deli têm de que a sua minoria muçulmana, 15% dos 1200 milhões de indianos, nunca será transformada em quinta coluna dos jihadistas. E se do ponto de vista do discurso oficial laicista assim tem de ser, até por contraponto ao Paquistão “pátria dos muçulmanos” criado em 1947, a verdade é que a história pós- independência sustenta bem esta atitude.
Não só o Paquistão, que já travou três guerras com a Índia desde a divisão no fim da colonização britânica, nunca conseguiu sucesso em atrair a lealdade dos muçulmanos da Índia, como na maioria dos casos de atentados terroristas, por exemplo o de 2008 em Bombaim que fez mais de 200 mortos, os auto- res vieram das organizações extremistas do Paquistão e não tinham aliados na comunidade local. E a aversão dos muçulmanos da Índia ao aventureirismo jihadista é também surpreendente, pois são escassos os casos de combatentes nas fileiras do Estado Islâmico, por contraponto a outras nacionalidades, como a tunisina ou a saudita, mas também a francesa. Um estudo do Centre for the Study of Radicalization and Political Violence, baseado em Londres, dava conta de 3000 tunisinos a combater na Síria e no Iraque e de 2500 sauditas, dados de finais de 2014. Já a revista The Atlantic, num artigo publicado em março, falava de 1000 franceses, 550 alemães e 500 britânicos, entre descendentes de famílias muçulmanas e também gente convertida, alguns até à pressa.
Escasseiam as informações sobre indianos que se voluntariaram para a causa do Estado Islâmico. Um artigo no The Diplomat dizia que a secreta india- na teme que 300 jovens estejam ao serviço do Tehreek-e- Taliban, grupo paquistanês que colabora com o Estado Islâmico. E sabe- se que há propaganda em várias línguas do subcontinente, como o tâmil e o telugu, a circular na net. Houve algumas detenções de indivíduos que pretendiam partir para o Médio Oriente e há dias um tweet de conta ligada aos jihadistas mostrava supostas fotos de indianos a lutar na Síria e no Iraque.
A vigilância é importante na estratégia de defesa da Índia, mas mais importante ainda é o sucesso do projeto de país multicultural, plurilinguístico e acima das religiões que o Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru conceberam, mesmo com Mohammed Ali Jinnah a defender junto do vice- rei britânico a criação do Paquistão. Na troca de populações em 1947 terá morrido um milhão de pessoas, com muçulmanos massacrados no lado indiano, hindus e sikhs no lado paquistanês. E a soberania sobre Caxemira continua a ser reivindicada pelos irmãos- inimigos, servindo essa disputa como argumento da propaganda jihadista contra a Índia.
Desde o ano passado, um governo nacionalista hindu está no poder em Nova Deli. E o número de deputados muçulmanos está em mínimos históricos, pouco mais de 20, menos de 5% do total, quando já chegaram a ser quase 10%. Há quem veja neste sucesso de Narendra Modi, um político associado ao êxito económico no Gujarate mas também à inação durante motins antimuçulmanos em 2002, uma ameaça ao islão indiano, mas um acontecimento esta semana mostrou que a Índia consegue sempre surpreender: o consenso nacional em torno da figura de Abdul Kalam, o ex- presidente que morreu com 83 anos e que era um herói pelo papel nos projetos espacial e nuclear. Nascido numa família de muçulmanos pobres do Tamil Nadu, Kalam revelou- se genial, e não só chegou a chefe de Estado ( o terceiro muçulmano) como a autobiografia Asas de Fogo foi um tal sucesso que teve edições em várias das línguas indianas.
Ora, em 2002 foram os nacionalistas hindus que promoveram a candidatura presidencial do chamado “homem- míssil”. Hoje, é o exemplo de Abdul Kalam que melhor defende a Índia contra o Estado Islâmico.