Diário de Notícias

Raquel André coleciona amantes no Brasil e nos Açores

Desde maio do ano passado que Raquel André coleciona o efémero. Como? Em fotografia­s. E que efémero? O outro e a relação que temos com o outro. Na quarta- feira à noite, em Ponta Delgada, apresentou a sua Coleção de Amantes, o resultado de 73 encontros, q

- Maria João Caetano, POR em Ponta Delgada A jornalista viajou a convite do Walk & Talk

Foram 73 encontros. 30 eram homens, 43 eram mulheres. 49 eram totalmente desconheci­dos para Raquel. 19 eram conhecidos. Com 6 teve alguma intimidade. De 3 era muito íntima. 3 ofereceram- lhe flores. 4 chocolates. 1 deu- lhe 1 chupa- chupa. A todos ela olhou no olhos durante pelo menos cinco segundos. Esta é a Coleção de Amantes de Raquel André.

Raquel tem 29 anos e um currículo como atriz que se divide entre as séries de televisão e um teatro mais experiment­al. Há quatro anos, ganhou uma bolsa da Inov- Art para ir para o Brasil estagiar na Cia. dos Atores. Ia por uns meses. Ficou até hoje. A fazer o mestrado na Universida­de Federal do Rio de Janeiro, decidiu fazer uma investigaç­ão sobre o colecionis­mo nas artes performati­vas. “Acho que a coisa mais efémera que existe é o outro e a relação que temos com o outro. Foi a partir daí que comecei a trabalhar”, explica. “Como posso colecionar o efémero?”, perguntou- se a seguir. E a resposta surgiu- lhe quase óbvia: todos nós tentamos guardar o efémero em fotografia­s.

Foi assim que começaram os encontros. “A proposta era marcar encontros com desconheci­dos em apartament­os desconheci­dos. O encontro dura uma hora, durante a qual ficcionamo­s que temos uma relação de intimidade e que vivemos naquele apartament­o há quatro anos. E comprovarm­os essa vi- vência em pelo menos uma fotografia.” Para fazer a sua Coleção de Amantes, Raquel teve 73 encontros. A 48 deu um abraço longo. De 44 despediu- se com dois beijinhos. Com 48 deitou- se na cama. De 30 ouviu claramente o bater no coração. 21 quase não a tocaram. 38 nasceram em Portugal continenta­l. 6 nos Açores.

Começou no Rio de Janeiro, em maio do ano passado. Este ano esteve em Lisboa, com encontros marcados durante dois dias, e, por fim, em Ponta Delgada, na semana que passou, a convite do festival Walk & Talk ( e a arte pública conhece bem o conflito entre o efémero e o que permanece). O convite aos desconheci­dos é feito através de amigos e das redes sociais. Raquel diz que lhe interessa a heterogene­idade, sair do seu ambiente, daquele grupo de jo- vens artistas de 30 anos, chegar aos verdadeiro­s desconheci­dos. “Não sei quem se inscreve, essa é uma premissa muito importante.” Abre a porta e surpreende- se. Pode encontrar um ex- namorado. Uma crítica de teatro. Um amigo de sempre. Um completo desconheci­do.

Com 39 usou a sala. Com 25 a cozinha. Com 11 o corredor. O cronómetro marca uma hora. E o que acontece nessa hora? Conversam. Conversam muito. E depois tiram fotografia­s. 67 falaram de ex- relações. 55 elogiaram- lhe o cabelo. 15 comeram. Com os 73 Raquel sentiu- se inicialmen­te nervosa. Com 23 ficou tensa a maior parte do tempo. 63 emocionara­m- se claramente. Do que falam dois estranhos quando são obrigados a ficar juntos durante uma hora? O que é a intimidade e como simulá- la ( ou como vivê- la)? Houve quem cozinhasse. Houve quem se despisse. Houve quem tomasse banho. Houve quem tirasse muitas fotografia­s e quem só tirasse uma. Para alguns a intimidade é um beijo. Para outros é uma gargalhada. Dormir agarrados. Confessar um segredo. As fotografia­s que procuram captar essa efemeridad­e mostram situações muito diversas. Lágrimas partilhada­s. Mãos que se tocam. 43 fotografar­am- lhe os pés. 1 pediu para ouvir Portishead. Outro quis ouvir Nina Simone. 7 falaram dos filhos. 1 deixou cair chá em cima da camisola de Raquel.

No final de cada encontro, além de ter uma ou mais fotografia­s para a coleção, Raquel registava o que tinha acontecido, para depois elaborar a sua lista. O catálogo da coleção. Foram esses dados que apresentou, perante uma pequena plateia, na quarta- feira à noite, na galeria Walk & Talk, em Ponta Delgada. E enquanto desfilava números – 1 falou da avó, 14 ficaram bem mais do que uma hora, 6 tinham relações com pessoas casadas, o mais novo tinha 17 anos, o mais velho 83 – no ecrã passavam algumas das fotografia­s dos amantes.

A atriz garante que durante os encontros não havia personagen­s. Era ela que ali se apresentav­a. Mas, tal como as fotografia­s são ficções, também o texto que acabou de dizer pode ser uma ficção. A fronteira entre realidade e ficção é difusa. É oscilante. Intermiten­te. E é nessa fronteira que ela gosta de trabalhar. “Não havia um guião. Tinha algumas ferramenta­s para desbloquea­r a conversa, mas estava muito aberta ao que as pessoas traziam. E, mesmo depois de muitos encontros, quando eu poderia estar a cair numa rotina, sempre me surpreendi­a com cada pessoa, cada pessoa é um abismo de novidade, na maneira como se relaciona comigo, com a intimidade, com o corpo.”

E, no final dos encontros, mesmo “havendo um filtro”, era normal criarem- se relações, nascerem amizades, nascer uma intimidade real na intimidade ficcionada. Aconteceu por exemplo com Helena, que cedeu a sua casa para os encontros de Raquel André em Ponta Delgada e acabou por ser a última participan­te nesta série: “O que ali aconteceu só a nós diz respeito. Mas, depois, fiquei a pensar que se calhar deveríamos ter feito outras coisas e tirado outras fotografia­s. O encontro pôs- me a pensar no que é a intimidade, que é muito mais do que um beijo, que é fácil de reproduzir para a máquina. E a verdade é que se a Raquel coleciona amantes, nós também o fazemos. Nós também a colecionam­os.”

A 11 de setembro estreia, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, o espetáculo Coleção de Amantes, que será depois apresentad­o no Tempo Festival, no Rio de Janeiro. Mas a coleção ainda não está completa, assegura Raquel André. O verdadeiro colecionad­or é obsessivo e não consegue parar nunca.

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As fotografia­s que a atriz mostrou procuram captar a efemeridad­e das relações e mostram situações muito diversas

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