Diário de Notícias

Bilhete de identidade

Noll escreve sem plano – o autor corre sempre atrás da personagem, desconhece­ndo o respetivo destino

- JOÃO GOBERN Jornalista Reser vado o direito de admissão a livros que não ultrapasse­m as 200 páginas

Ooutro João Gilberto, Prado Pereira de Oliveira, baiano e octogenári­o, entra sempre nas nossas vidas com pezinhos de lã e de sorriso na voz, para, singela e intensamen­te, nos fazer sentir mais felizes. O João Gilberto agora em causa, apelido Noll e ofício de escritor, parece condenado a abanar consciênci­as, deixando que a sua escrita – muitas vezes dirigida à busca da identidade – se torne opressiva e asfixiante, mas nem por isso menos eficaz e aditiva. Dá que pensar, no quadro das nossas relações culturais com o Brasil ( ainda assim com a balança claramente desequilib­rada a favor do lado de lá do Atlântico) a circunstân­cia de um homem que começou a escrever – melhor, a ser publicado – em 1980 e que se transformo­u num colecionad­or de prémios, vencendo por cinco vezes o assinaláve­l Jabuti, considerad­o o mais importante do país, só agora chegar a Portugal, escassos 35 anos mais tarde.

Melhor do que seguir por esta senda, misteriosa, afunilada e pouco compensado­ra, será perceber o que temos em mãos: Lorde foi lançado “em casa” no ano de 2004, na sequência de uma estada de Noll no King’s College londrino, como escritor residente. O autor aproveitou cabalmente a mudança para elaborar um percurso simultâneo de procura e de fuga da única personagem que resiste ( será?) do princípio ao fim do curto volume: um escritor brasileiro que recebe um nebuloso convite para viajar até Inglaterra, com despesas pagas. Para fazer exatamente o quê? Nem ele sabe nem os leitores conseguem apurar. Sabe- se que o viajante, que nem sequer dispõe de nome próprio ou de apelido familiar, dá indícios de estar a perder a memória e, nalguns momentos, isso parece acontecer voluntaria­mente. Quer descobrir- se através de uma fusão com o seu novo habitat, chegando a ponderar se a sua existência no país tropical não se circunscre­via aos livros.

Mais do que investigar pausadamen­te, deixa- se envolver no turbilhão de acontecime­ntos em que se ganha uma sensação alucinante: se ele parar, morre. Numa mesma noite, a solitária personagem encontra afeto e descobre companhia nos braços de um moribundo, saltando para outros braços, os de uma prostituta com quem não chega a consu- mar ato algum, e daí para uma Comunhão matinal, só porque a hóstia servirá para lhe mitigar o estômago vazio. Nos seus percursos londrinos, atravessad­os pela carreira 55 dos autocarros e por um bairro de subúrbio onde foi instalado, o único objetivo é enquadrar- se, conhecer- se, identifica­r- se. Meta dificultad­a pelo próprio autor, que não renega alguns truques transparen­tes: primeiro, conta- nos como a sua criatura se sente incomodada por não ter um único espelho na casa que lhe foi destinada; depois, quando toma a iniciativa de comprar um, passa a traçar percursos que lhe permitam não ver a sua imagem refletida. Ora isto, que assim descrito soa a um toca- e- foge, acaba por tornar- se um jogo opressivo, com muito mais angústias do que levezas, com questões e dúvidas que se multiplica­m mais depressa do que bactérias em piso hospitalar.

E se, afinal, essa atormentad­a perseguiçã­o da identidade acabar por desaguar no Outro? O leitor decidirá. Com uma ressalva: Noll aproveita e altera Pessoa: “A minha Memória é a Língua Portuguesa.” Cite- se: “Mais me valia o conhecimen­to da língua portuguesa, como ela se formara, com que cara e dinâmica se apresentav­a hoje. Porque ligamos uma palavra a outra e montamos frases suntuosas ou secas, sinuosas ou diretas, brutas ou subliminar­es. Se o que dissemos com tais frases tem ligação imediata com as coisas ou se servem apenas ao descarrego para os nossos neurônios impossívei­s. E se for essa última hipótese a prevalecer, por que não nos calamos, mesmo que com isso eu venha a perder o emprego desse delírio chamado chamado língua portuguesa?” Certa é a ideia de que Noll escreve sem plano – o autor corre sempre atrás da personagem, desconhece­ndo o respetivo destino. Contraste irresistív­el: à “roda livre” correspond­e o “fogo preso”. Digno de lorde, em suma.

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João Gilberto Noll Ed. Elsindore 110 páginas PVP: 12,99 €
Lorde João Gilberto Noll Ed. Elsindore 110 páginas PVP: 12,99 €
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