Diário de Notícias

JOAQUIM DE ALMEIDA

JOAQUIM DE ALMEIDA

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“Há certos vilões que não tenho paciência para fazer”

Foi vilão sul- americano tantas vezes, que quando apareceu n’A

Gaiola Dourada, de Ruben Alves, no papel de um imigrante em Paris, ao mesmo tempo bruto e terno, homem de futebol e fado, a debater- se entre preconceit­os e sonhos, foi um alívio. Vê- lo- emos de novo imigrante português, pai de família, nos Estados Unidos, no filme Um Encontro com o Destino, do canadiano John L’Ecuyer, com estreia no dia 13 em Portugal. Sim, ele é português e, apesar de viver desde a juventude nos Estados Unidos, conhece- nos bem. Antes de partir à procura de um lugar no cinema norte- americano, foi um aluno indiscipli­nado e cábula, expulso de vários liceus de Lisboa – Padre António Vieira, Pedro Nunes e D. Pedro V, até estabiliza­r no D. João de Castro. De um dia para o outro, cortou o cabelo comprido e tornou- se um radical do MAEESL, o Movimento Associativ­o dos estudantes do Ensino Secundário de Lisboa, que nos últimos anos da ditadura agitou as escolas e alimentou o movimento associativ­o universitá­rio. Agora, aparece para a entrevista no café de S. Pedro de Sintra, onde costuma tomar cedinho o pequeno- almoço, e é como se tivesse recuado no tempo. Emagreceu, tem uma expressão mais fresca. O filho Lourenço aparecerá no fim da conversa e vai explicar- me que obriga o pai a fazer desporto. Lourenço estudou teatro em Glasgow, está embrenhado em duas peças para o festival de Edimburgo, e prepara- se para partir para Nova Iorque, num caminho que se aproxima do de Joaquim. Na verdade, ficam longe um do outro porque o pai já vendeu o

loft enorme de Tribeca onde fazia grande almoçarada­s. Agora vive na Califórnia, em frente ao mar de Santa Mónica, muito perto do Amelia’s, o melhor café da cidade. Mas lá ele bebe pouco café. Deixa esse hábito para Sintra, onde conversamo­s com muitos “eh pá” e muitas gargalhada­s.

No dia 13, chega aos cinemas Um Encontro com o Destino, um filme sobre uma família portuguesa na América. Que filme é? É uma comédia e passa- se nos Estados Unidos. Filmámos no Canadá e resolveram mudar a história para Nova Iorque. Preferia que fosse realmente Toronto, porque vivem lá muito mais portuguese­s, mas também há em Nova Iorque. Toronto parece o Soho. Por aquilo que li, pareceu- me uma adaptação de A Gaiola Dourada. Não é bem isso. Enquanto o filme do Ruben Alves é baseado na família portuguesa, este é feito a partir do romance de um tipo de origem irlandesa com uma portuguesa. Ela leva- o a casa dos pais e ele apanha com a família toda. O pai, que sou eu, não está muito para estrangeir­os e diz que o que era bom era o namorado português que ela tinha. A comédia está engraçada. Começa devagarinh­o, passa- se tudo em flashbacks. Eles encontram- se num diner quando ela tinha acabado de cortar com o português – e depois a história começa a funcionar. A partir do momento em que ela o leva a casa, aquilo arranca. O filme está muito engraçado. Vive mais em Portugal, agora? Tento vir mais porque, quando não trabalho, estou muito melhor aqui. Menos no inverno, porque o inverno aqui em Sintra é de mais. Fui viver para Santa Mónica quando fiz a série 24. Ia para casas fantástica­s de amigos. Sou fanático com a limpeza, eles diziam “podes ficar quando quiseres porque quando chego está a casa melhor do que estava”. Porquê isso da limpeza? Sempre fui assim. Gosto das coisas limpas, as minhas casas estão sem- pre arrumadíss­imas. Tenho uma irmã pior do que eu, mas outra é uma desorganiz­ada, sempre a perder coisas. Nunca perde as chaves, nunca sai de casa sem o telemóvel? Sim, mas a casa tem de estar impecável. As empregadas, lá nos Estados Unidos, dizem: “O que é que eu venho limpar? Isto está limpo.” “Não está não, veja aqui…” À custa disso, os amigos telefonava­m- me: “Vou estar fora uns tempos, podia ser que quisesses vir tomar conta…” Às vezes, ia. Ficava três, quatro meses. Não gostava de Los Angeles, mas acabei por alugar um apartament­o na praia e, ao fim de seis meses, percebi que era muito sossegado. Vendi o meu loft de Nova Iorque e fui viver para a Califórnia, onde gosto de estar no inverno. E onde se faz muito mais televisão. E Nova Iorque? Perdi uma data de amigos, ganhei outros. Gostava de Nova Iorque, do espírito das pessoas. É uma cidade grande, mas as pessoas conhecem- se, encontram- se nos bares. Continua a trabalhar imenso? Continuo, mas acho sempre que tenho muito tempo livre. Quando tinha 30 anos, fazia três, quatro filmes por ano. Estava a filmar um e já a preparar outro, e sempre em línguas diferentes. Agora tenho trabalho, depois tenho um mês, dois meses livres, depois trabalho. Estive a ver uns excertos do Bom Dia Babilónia [ 1987, realizado por Vittorio e Paolo Taviani], estava tão novinho… Eh pá, foi um grande filme. A propósito, há dias encontrei- me com um realizador e produtor francês que vive em Nova Iorque e quer fazer um filme chamado Goa, baseado num livro que o pai dele escreveu. O pai era português, era alferes em 1961 em Goa, quando a Índia tomou conta daquilo e o Salazar disse que era preciso o sacrifício total, que só podia haver soldados vitoriosos ou mortos. O filme está muito bem escrito e ele quer que faça uma personagem. Vai aceitar? Estamos em conversaçõ­es. Ele quer que eu faça um coronel facho e não me apetecia muito porque não vejo muita coisa no homem. Ele diz que o homem é machista mas que no final se descobre em parte homossexua­l. E aí já tenho alguma coisa para pegar na personagem. Embora no filme tenha um papel pequeno, o Vassalo e Silva é mais interessan­te. Decidiu- se pela rendição. Se não fosse ele, aquilo era um suicídio. Estiveram seis meses numa prisão lá, onde foram bem tratados, e depois onde foram maltratado­s foi cá – o pai dele, um puto de 30 e tal anos, esteve um ano sem poder sair do quartel. Mas estava a falar do Bom Dia Babilónia... Porque o tal realizador disse- me que o filme saiu quando ele era puto e, como o pai dele era português, ficava todo orgulhoso de ver um ator português. É mesmo simbólico de um país pequeno. Descobri na net o trailer de um filme chamado Una Vida em que é um neurocient­ista. Como é? Vai ser distribuíd­o agora, mas em Portugal não sei. O título mudou, vai ser Of Mind and Music. É um filme sobre a doença de Alzheimer e em imensos festivais teve prémios do público. Estive agora em Albuquerqu­e para receber um prémio de carreira e mostraram- no, ganhou o prémio de melhor realizador. Mas cá acham difícil de vender. Este não é um papel diferente do que tem feito, com mais nuances de interpreta­ção? Por isso o quis fazer. É baseado num livro autobiográ­fico de um médico argentino, Nicolas Bazan, que coescreveu o argumento. Ele é um homem grande, jogou râguebi, um senhor incrível, de mais de 70 anos, que produz vinho, toca numa banda de mariachis. Foi o criador do Neuroscien­ce Institute of New Orleans, o expoente máximo da doença de Alzheimer nos Estados Unidos. Um outro médico italiano, Pierluigi Nicotera, pagou o bilhete de avião para entrar no filme. Queríamos um médico a sério, e ele tem mil milhões de dólares na Alemanha para tratar a doença. Os alemães são os mais consciente­s de que se não se descobre a cura nos próximos 15 anos vamos ter um problema enormíssim­o. A minha mãe morreu de Alzheimer e… Tinha esse envolvimen­to pessoal? Exatamente. A atriz que faz a cantora com Alzheimer tem a mãe com demência. Ali, todos tínhamos uma relação com o tema. O realizador disse- me: “Gostava que fosses tu porque às vezes falas sem precisar de usar palavras, e é disso que preciso nesta personagem.” É um tipo com a obsessão da culpa porque não estava presente quando a mãe morreu. A minha mãe no filme é uma senhora com 95 anos, sogra do Dr. Bazan, e eu é que a dirigia, porque só fala espanhol e o realizador não. Eu tinha de lhe dizer como era. E ela fazia as coisas e depois dizia: “Esta bien?” Eu dizia: “Não podes dizer isso. Olha para mim e eu faço- te um gesto.” Esse filme devia ser visto cá. Tem uma qualidade! Uma distribuid­ora independen­te interessou- se pelo filme. Envolveu- se neste papel mais do que é costume? Sim. Ele está a sentir- se mal com a morte da mãe e tira uns dias. Vai para um bar de jazz e observa que a cantora parece fantástica e quando deixa de cantar fica noutro mundo. E lembra- se do Pierluigi, que tem um estudo sobre dois velhos que quando ouviam Elvis Presley fala-

vam animadamen­te, mas quando tiravam o Elvis caíam na prostração. A música trazia- os de volta. Como é a experiênci­a de trabalhar com um monstro como o Michael Caine? O Michael Caine ainda não tinha chegado quando começámos a filmar a cena do rapto, no Cônsul Honorário. Eu achava que o duplo era muito grande, mas afinal ele era ainda maior, tem mais de um metro e noventa! O Gene Hackman também. No Atrás das Linhas do Inimigo [ 2001, realizado por John Moore], estávamos a filmar em Bratislava e quando nos apresentar­am, ele levantou- se e eu, uau... Uma pessoa na tela não se dá conta. Já me perguntara­m se o Richard Gere é tão pequeno como eu. E tenho de explicar que às vezes estou em cima de uma caixa para ficarmos da mesma altura. Aprendi muito com o Michael Caine, a vê- lo trabalhar. Ele tinha 53, eu tinha 25, era o meu segundo filme. É um tipo especialme­nte simples. Estávamos a filmar na selva e apesar de termos jeans por baixo das calças os mosquitos picavam- nos. O desgraçado do Richard Gere foi parar ao hospital duas vezes, perdeu oito quilos em 15 dias. Fora das filmagens conviviam? Estávamos no hotel, no México, e o Michael Caine, com aquela imponência e altura, com aquele ar, muito bem vestido, sentava- se no bar sozinho. É muito tímido. E eu tinha 25 anos e pensei: “Que se lixe, vou perguntar- lhe se posso sentar- me com ele.” E ele logo “please, please”. Ele bebia cerveja e conhaque e eu fui naquela... fiquei com uma bebedeira! O Bob Hoskins não o conhecia bem e também foi para a mesma mesa. Descobrira­m os dois que eram cockneys, começaram a falar e eu deixei de perceber. O Caine bebia dois conhaques, duas cervejas e depois dizia: “OK. It’s time for me to go.” É o que eu faço agora. Os putos vão todos sair e eu vou para a cama, porque no dia a seguir aquilo já custa. Estou a entrar nessa coisa dos mais velhos. Olham para si como olhou para o Michael Caine? Quantas vezes! Os atores mais novos viram- me nos filmes quando eram putos e dizem [ faz um tom reverente]: “Olá, é um prazer conhecê- lo. Gosto muito dos seus filmes.” Vai fazer novamente televisão? Fiz dois episódios- piloto e só uma das séries vai para a frente – A Rainha do Sul, de Pérez- Reverte. Apetecia- me fazer uma série de 13 episódios por ano. Pode- se estar cinco anos a fazer aquilo, mas são só cinco meses e tens o resto do ano para outras coisas. Nunca fez teatro, depois do Conservató­rio? Comecei no teatro nos Estados Unidos. Fiz papéis importante­s, papéis principais. Em Baltimore, no Center Stage, fiz o Savages, do Christophe­r Hampton. Em Washington, no American Theater, fiz O Conde de Monte Cristo com o Peter Sellars, com atores fantástico­s. A última peça que fiz foi as Bodas de Sangue do Lorca, no Joseph Papp Public Theater de Nova Iorque, há 23 anos. Prefere o cinema ao teatro? Prefiro. Eu não sou muito de teatro. Deitava- me às cinco da manhã, vivia a seguir ao teatro e quando acordava já tinha os diálogos na cabeça. No cinema, vivo um bocado assim mas, à medida que vou fazendo as cenas, tiro- as da cabeça. Agora fiz uma participaç­ão numa novela da TVI e fiquei com imenso respeito pelos atores de novela em Portugal. Nos Estados Unidos somos uns príncipes, temos a nossa rulote, o nosso lugar. Aqui, têm uma sala para todos, às vezes nem há ar condiciona­do. Nas séries de televisão americanas, achamos que é muito rápido e fazemos um episódio em oito dias. É feito à cinema, com cuidado. Aqui, na novela, têm três equipas a trabalhar em simultâneo, fazem um episódio por dia e trabalham tudo ao mesmo tempo. Há atores que vão de um grupo para o outro. Mas é a única forma de sobrevivên­cia dos atores em Portugal. Porque há muitos atores a trabalhar, são produções grandes. Em Portugal não se pode viver do cinema. Dá para perceber que gosta de trabalhar, não se cansa? Não me importo nada de não estar a trabalhar, mas tenho de ter projetos para fazer. Ainda agora estava preocupado com a rega do seu jardim. Costuma jardinar? Gosto muito do meu jardinzinh­o, tenho dois jardineiro­s, mas divirto- me ali. O que faz quando está parado, como agora? Leio imenso. No ano passado, comprei 48 livros no Kindle e li- os todos. Sou um ávido… Leio, pá! Gosto de ler. E leio livros em papel ao mesmo tempo. Agora comprei todos os livros do George Pelecanos, que não conhecia, e já li quatro. Descobri também tipos como o Jo Nesbø, autores norueguese­s. E acabei agora As Cruzadas Vistas Pelos Árabes, do Amin Maalouf. É giro, voltei para trás e estou a ler outra vez, porque ele mistura e salta daqui para ali e depois volta. Aquilo é o que se está a passar outra vez! Mil anos depois e estamos na mesma coisa. Com outras armas, mas é tudo igual! A pesquisar sobre si, descobri uma coisa que para mim era um mistério: o Teatro Joaquim de Almeida, no Montijo, é por causa de outro ator. É um ator do século XIX que tem uma estátua no Jardim da Estrela, com umas grandes patilhas. Também há a Rua Joaquim de Almeida no Bairro dos Atores, em Lisboa. Vêm dizer- me “já tens um cineteatro!” Pensam que sou eu.

Diz que aprendeu muito com o Michael Caine. E com o realizador John Mackenzie também. Tinha feito o Conservató­rio e o Lee Strasberg Institute… … e tinha estudado com o Nicholas Ray a adaptação para câmara. Mas trabalhar é outra coisa. No Lee Strasberg aprendi bastante, mas o Conservató­rio, na minha altura, estava um bocado abandalhad­o. O método era o de Grotowski, que para o cinema não entra. É tudo teatro experiment­al, estávamos na época do Peter Brooks. Foi casado duas vezes, fala de namoradas. A questão das relações é complicada com a vida que tem? É um assunto complicado. As namoradas agora são mais velhas… Até há pouco tempo não era assim. Havia uma diferença grande, mas as mais novas querem ter filhos e eu não. As mais velhas querem ter uma relação mais estável e eu continuo a andar de um lado para o outro. Continua a não ser muito simples. De vez em quando estou com alguém, mas também estou numa altura em que não me preocupo muito. Uma pessoa também não quer acabar velho e sozinho, não é? Vou tendo relações. Umas duram, outras não duram. A dificuldad­e continua a ser a mesma. Era mais fácil quando se era mais novo, até porque ia e vinha, tinha sempre os filhos como base e voltava. Alias, é a razão por que eu venho sempre também, por causa da Ana, a minha filha mais nova. Como o Lourenço vai para Nova Iorque, vai ser mais fácil vê- lo. Com essas mudanças, o que aconteceu às suas amizades? Agora, tenho muitos amigos aqui em Portugal. Tenho um grupo de amigos aqui em Sintra, tenho um grupo de amigos em Los Angeles e tenho um grupo de amigos em Nova Iorque. Com os de Nova Iorque, falamos ao telefone, mas vejo- os pouco. O meu grupo de amigos em Los Angeles não é assim tão próximo como os daqui. Eu conheço muita gente, mas não tenho muitos amigos. Mas não é preciso ter muitos, é preciso ter alguns bons amigos. Tinha um grande grupo de amigos em Madrid, porque fiz vinte e tal filmes em Espanha. Agora estive em Madrid, esti- ve lá, a minha agente veio ter comigo – já não a via há um tempo e está a ficar mais velhota. Perguntei- lhe por este e por aquele, e ela respondeu que não os tem visto. Isto também é uma coisa da idade. Muitos dos realizador­es de quem eu era amigo e com quem trabalhei, agora têm 70 anos, outros já morreram. Não se chateia de ser ainda o vilão latino? Mandaram- me agora um guião e, por acaso, eu respondi ao meu agente “Outro vilão!?” Mas aceitei porque é com o John Singleton. Houve uma altura em que me fartei de fazer de vilão e há certos vilões que não tenho paciência para fazer, depende do contexto em que estão nos filmes. Há outros que de que gosto. E se é um filme de estúdio, faço, porque vende no mundo inteiro e paga muito dinheiro. Não me posso dar ao luxo de dizer que não. Hoje tem uma vida confortáve­l? Sim, mas tenho filhos ainda pequenos. Andaram sempre em escolas internacio­nais. A melhor coisa que podemos dar aos nossos filhos é a educação. Mas eu tenho uma vida boa. Houve uma altura em que trabalhei muito e ganhei bom dinheiro. As casas estão pagas, não devo nada a ninguém. Os carros estão a ficar velhos mas também estão pagos. Nunca comprei nada a crédito. Mesmo os cartões de crédito, pago- os logo. Não gosto de dever dinheiro aos bancos. Gosta de carros? Gosto muito de carros que andem e não me chateiem. Tenho dois Mercedes, um com 15 anos – um descapotáv­el, daqueles pequeni- nos – e uma carrinha para a família, que também já deve ter uns 15 anos. Têm 80 mil quilómetro­s, com aqueles anos todos. Lá nos EUA, tenho um Porsche Carrera descapotáv­el de 2003 e um Jaguar com 15 anos. Mas têm poucos quilómetro­s, não os uso muito. Não os troco e depois afeiçoo- me a eles. O seu filho Lourenço também é ator. Isso faz- lhe reviver a sua vida? Preocupa- me um bocadinho, porque comigo correu bem mas conheço uma data de gajos que estudaram comigo e não conseguira­m. O Joaquim não teve medo de se atirar para a frente e o seu filho também não parece ter grande medo. Ele está todo entusiasma­do. Mas depois ganha- se o medo de não conseguir continuar. Com a idade, é uma chatice. Às vezes, fico com aquele nervoso – será que ninguém me vai dar mais trabalho? Já estou a ficar velho. Os papéis principais são escritos mais para a faixa entre os 30 aos 45. Depois começa- se a fazer de pai. Há menos trabalho para pessoas mais velhas. Nos Estados Unidos, sou uma coisa especial, também, porque tenho um accent estrangeir­o. Agora ando a ver se fazemos um filme em Portugal. Com que realizador? O David Gordon Green, do filme com a Sandra Bullock, o Our Brand is Crisis. Foi ele que pensou filmar aqui. Apresentei- lhe um ator português que está lá, o Francisco Froes, arranjámos um produtor português que vive lá também e que está interessad­o em pôr o dinheiro. E agora vem cá o escritor e vamos fazer a adaptação daquilo a Portugal a ver se dá. É um filme pequeno, para nos dar gozo. Ninguém vai fazer muito dinheiro, a não ser que aquilo se venda bem. Mas o filme com a Sandra Bullock vai vender- se bem, não? Claro que sim, é um filme grande, da Warner Brothers. Mas às vezes apetece- me mais fazer este estilo de coisas. Gostei muito de trabalhar com o David e a ele apetece- lhe dirigir numa língua que não conhece. Tem 40 anos, está a produzir duas séries de televisão e está sempre a trabalhar. Agora metemo- nos nisto. Pensei que ia esquecer- se da conversa, mas não. Apareceu sempre nos encontros. Aparece na lista dos seus filmes que fez um chamado Sandino de que não tinha ouvido falar. Que filme foi esse? O Coppola disse- me que a CIA o comprou para não ser visto nos Estados Unidos. Disse- me isso uma vez que fui falar com ele por causa do Drácula. Eu tinha acabado de chegar de uma viagem da Europa, com jet lag. A limusina levou- me aos estúdios, estava a sair a Winona Ryder, e ele: “Eh pá, és português deves gostar de vinho.” Foi buscar uma garrafa e bebemos logo toda. E depois pediu à filha, que na altura era uma miúda, para nos filmar. A Sofia! Depois ela foi mostrar--me o sí ti o ondeoir mão, o Roman, estava a editar, tinha o filme todo editado em storyboard, mas stor yboard feito à grande. Aquele gajo fazia o filme todo primeiro em storyboard. O que é que ele disse do Sandino? A minha agente tinha- lhe mandado o filme inacabado. Tinha o Kris Kristoffer­son, o Dean Stockwell, a Ángela Molina, a Victoria Abril e eu, que fazia de Sandino. “Infelizmen­te, esta instituiçã­o para quem eu estou a trabalhar, a Columbia Pictures, comprou isto em nome da CIA para não ser distribuíd­o nos Estados Unidos”, disse- me ele. Porquê? A história do Sandino é o primeiro Vietname americano, via- se no filme as coisas que eles fizeram. E nós filmámos na altura da guerra entre os sandinista­s e os cont ras. O Sandino f oi o primeiro grande herói da América Latina contra o poder dos Estados Unidos, com a Chiquita Banana. E como era a personagem? Eu estava vestido como general [ diz em espanhol] e as pessoas, lá na Nicarágua, chamavam- me general [ em espanhol]. Apareceu uma fotografia minha num jornal, e foram lá uns velhos dizer: “Estamos aquí para hablar con el general, porque sabíamos que el general no estaba muerto.” Às vezes na rodagem pediam- me para mandar calar as pessoas, porque só me respeitava­m a mim, o general. E eu dizia: “Oí, por favor ahora si l encio, eh!” Calava- se tudo. Aquela sensação de poder é uma coisa! Como era o ambiente no país, nesse período? Eu recebia cem dólares por dia, para gastos, num país em que os extras recebiam um dólar por dia. Um dia tive a má ideia de trocar cem dólares em notas de dólar para distribuir aos putos. Iam- me matando. Foi uma avalancha, tive de atirar o dinheiro para o ar e fugir. Morreram três miúdos durante as filmagens, atropelado­s pelos camiões. Aquilo era um circo que se movia daqui para ali e aquelas estradas… Os putos andam por ali, correm. A pobreza era impression­ante. Estiveram muito tempo? Quatro meses. Tive lá uma namorada, parecida com a Bianca Jagger, e ela conhecia os revolucion­ários todos. Um dia estamos a tomar banho na piscina, numa estância de férias, e os amigos dela afastam- se para uma reunião, enquanto eu e ela tomávamos banho. No dia a seguir vejo que tinham tomado decisões importantí­ssimas numa reunião com a Costa Rica, e tinha sido ali, tudo em fato de banho e a beber rum, tudo um bocado bêbedo. Depois houve o dia da Revolução, e o Daniel Ortega convidou- nos. Estamos lá todos, por trás dele, convidados de honra, aquilo a ser filmado. E às tantas o Ortega diz: “Los americanos que se jodan! Que se jodan!” E levantam- se todos: “Que se jodan! Que se jodan!” E nós também gritávamos “que se jodan!”.

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ANA SOUSA DIAS ( Text os ) REINALDO RODRIGUES ( Fotografia­s)
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