Terminado o Walk & Talk, as ruas ficam de todas as cores
Criar uma ligação entre os artistas convidados e a população de Ponta Delgada foi a aposta da quinta edição do Walk & Talk
João Andrade, 63 anos, senta- se sobre um pequeno estrado de madeira, descalça os sapatos e é com os pés nus que agarra a base da cesta de vime que está a criar. Um molho de vime ao seu lado, um alguidar com água para ir molhando o material e as mãos a trabalhar a grande velocidade, quase automaticamente, tecendo vime ao mesmo tempo que vai falando de quando era miúdo, lá em Água de Pau, a 17 quilómetros de Ponta Delgada, e queria aprender o ofício. Começou com 11 anos e nunca teve outro trabalho.
O senhor João é um dos artesãos da ilha que participam nas residências de artesanato do festival Walk & Talk, comissariadas pelo designer Miguel Flor e que se realizaram neste ano pela segunda vez. A ideia era proporcionar cruzamentos entre designers e artesãos e, no final de duas semanas de trabalho, apresentar uma obra concluída. João Andrade trabalhou com o designer Rui Freitas na criação de uma gambiarra em vime. “Esta foi a primeira que fiz, não saiu bem. Esta ficou muito larga. Esta já está melhor”, mostra. “A gente consegue fazer tudo, mas tem de se ir tentando...”
A designer Carolina Brito, que no ano passado fez com o senhor João umas cobiçadas mochilas de vime e tecido, decidiu neste ano continuar essa colaboração para criar um cesto de compras. Quem sabe não possam um dia comercializar estas e outras peças criadas nestas residências – esse é um sonho de Miguel Flor que poderá concretizar- se em breve. “Estamos a trabalhar com uma marca portuguesa para criar peças by Walk & Talk, mas ainda não podemos adiantar muito mais”, revela, entusiasmado. A Vida Portuguesa é uma das marcas interessadas.
O designer Júlio Dolbeth ficou “apaixonado” pelos registos do Santo Cristo e tem estado a criar pequenos registos com aplicações de es- camas de peixes. Susana Bettencourt optou por trabalhar com os bordados tradicionais e aqui juntou- se a dona Fátima, mestre costureira e bordadeira. Juntas estão a fazer duas T- shirts com a ilha de São Miguel bordada. “Têm sido muitas noites sem dormir”, contava a artesã na quinta- feira, dois dias antes do dia em que deveriam apresentar o trabalho. “São muitos pormenores.” Já prontos estavam os tapetes de Célia Esteves, criados com a ajuda de quatro tecedeiras de Lomba da Maia. Já de idade avançada mas com “uma energia rara”, Veneranda, Ricarda, Grinoalda e Maria trabalharam intensamente, entre risos e cantares, durante oito dias para dar vida à história da ilha Sabrina em fios azuis e castanhos. “Só faz sentido com a comunidade” Aconteceu tudo ali, na enorme oficina, nas traseiras da galeria Walk & Talk, onde artistas, artesãos, colaboradores do festival e amigos se juntaram todos dias ( e também muitas noites) para produzirem os seus trabalhos num ambiente de grande colaboração e influência. Há sempre alguém a entrar, a querer saber, a dar ideias. O artista norte- americano Brad Downey aprendeu a trabalhar o vime com o senhor João e a sua peça acabou por incluir esse elemento. Nuno Paiva contou com a ajuda de todos para construir a sua peça e depois para transportá- la para o mar – uma enorme rede espelhada que ficou a boiar na baía de Ponta Delgada.
A peça de Dalila Gonçalves tem tido problemas em ganhar o seu espaço num beco no centro da cidade. Todos os dias, os colaboradores do Walk & Talk vêm montar a peça, que ocupa uma parte do chão e dificulta a passagem. Todos os dias, os donos dos estabelecimentos comerciais da rua retiram a obra do caminho e encostam- na num canto.
Vendo bem, talvez nem todos ajudem, mas estas situações são exceções que não podem ofuscar o essencial: o festival tem vindo a fazer um esforço para criar ligações entre os artistas e a população, pontes levantadas, às vezes, em locais inóspitos.
“Isto não pode ser uma coisa dos artistas, que vêm, criam e vão- se embora. Tem de ser da comunidade, só assim faz sentido”, diz Jesse James, o fundador, com Diana Sousa, do Walk & Talk. Eles não param, sempre a tentar resolver qualquer problema e a garantir que todos os artistas têm o que precisam para o seu trabalho. Sempre a sorrir, apesar de exaustos. E não desistem. A ligação com a população é a chave deste festival, perceberam- no logo na primeira edição, em 2011, e é por isso que, além dos projetos de arte urbana espalhados pela cidade, têm vindo a aprofundar o programa de residências, trazendo cada vez mais artistas para trabalhar, com tempo, neste espaço, com as pessoas daqui.
Como a performer Raquel André, que realizou aqui parte da pesquisa para a sua Coleção de Amantes. Como o coreógrafo Luís Guerra, que criou o espetáculo Espectro com o 37.25 – Núcleo de Artes Performativas, uma companhia que existe desde 2010 e que nasceu da vontade de um grupo de bailarinos de São Miguel em fazer dança contemporânea na ilha. “Mesmo que trabalhemos todos noutros sítios, pelo menos uma vez por ano voltamos para criar e dançar”, explica Cecília Hudec. Ou como Miguel Januário, que já não está em Ponta Delgada mas deixou ali, encostada à parede da oficina, para quem a quiser usar, a bicicleta artilhada com que andou pela ilha, parando o trânsito e provocando os mais inflamados comentários. Novas embalagens para a Gorreana Na sexta- feira à tarde, os designers Nuno Coelho e Nuno Nunes estiveram na fábrica Gorreana a dar vida às suas criações: embalagens que ganharam forma e se encheram de chá pelas mãos das trabalhadoras da fábrica. A ilha de São Miguel chegou a ter 16 plantações de chá, agora só tem duas. E a única que trabalha ininterruptamente desde o século XIX é a Gorreana. Foi fundada em 1883 e atualmente é como “uma fábrica viva”, uma vez que continua a produzir chá seguindo os métodos tradicionais, ao mesmo tempo que está aberta a todos os que queiram visitá- la, acompanhar o processo de fabrico e até provar o chá. “São todos bem- vindos”, diz Sara Mota, gestora, quinta geração da família que plantou ali os primeiros pés de chá.
O projeto do designer Nuno Coelho – que tem feito investigações em torno da comunicação de fábricas históricas portuguesas, como a saboneteria Confiança – começou por uma visita à fábrica de chá e por uma pesquisa em torno das imagens da Gorreana – trouxe consigo rótulos antigos, embalagens, folhetos publicitários de outros tempos com senhoras de vestidos compridos a tomar chá servido por criadas de avental branco de renda. Esse material iconográfico inspirou a segunda parte do projeto, já na Tipografia Micaelense, em Ponta Delgada, onde estiveram em residência.
“Decidimos trabalhar só com os elementos já existentes na tipografia e não criar tipos novos”, explica Nuno Neves, designer ligado à re-
cuperação do processo tipográfico, nomeadamente com a marca Serrote. Na Micaelense há caixas e caixas de pequenos tipos alinhados em prateleiras cheias de pó, que os Nunos exploraram com mil cuidados. Ainda cheira a chumbo, mas pouco, pois, como explica Dinis Botelho, tipógrafo há mais de 40 anos e um dos donos da empresa, “hoje, a maior parte do trabalho é feito em offset”. Apenas há três anos, com o impulso da designer micaelense Júlia Garcia e do festival Walk & Talk, a tipografia antiga voltou a funcionar. Não a todo gás. Mas para projetos pontuais.
“Esta técnica tem muitas limitações quando comparada com outros métodos de impressão, mas são limitações estimulantes”, explica Nuno Neves. Os designers aproveitaram a matriz de um antigo folheto para fazer uma nova gravura. Criaram, apenas com os elementos tipográficos ali encontrados, uma ilustração – com um bule – que será vendida como uma edição limitada Walk & Talk. E criaram quatro embalagens para os quatro tipos de chá Gorreana ( e que, quando colocadas todas juntas formam a imagem do bule). “Tivemos muito pouco tempo, não é possível recriar a imagem de uma marca em duas semanas”, avisa Nuno Coelho.
Este é apenas um projeto de pesquisa que pode abrir caminhos a trabalhos futuros. Lançar ideias para a Gorreana melhorar as suas embalagens e, quem sabe, vir a colaborar com a Tipografia Micaelense. Os turistas que estavam na fábrica na sexta- feira ficaram entusiasmados, queriam comprar os protótipos. Sara Matos gostou do resultado. Quem sabe o que pode acontecer?
A arte de ocupar paredes A parte mais visível do festival Walk & Talk são, sem dúvida, os murais. “Nos primeiros anos, houve essa necessidade de ocupar a cidade, de sair para a rua. Depois começámos a apresentar outro tipo de obras de arte”, explica Sofia Carolina Botelho, elemento da organização do festival, enquanto nos guia pelos vários murais em Ponta Delgada – em casas abandonadas, em espaços públicos e até em residências particulares, as intervenções foram sendo feitas com a autorização dos proprietários.
Na sua quinta edição, o festival tomou este ano a decisão de apagar alguns dos murais que já estavam mais danificados e pintar por cima. Foi uma decisão ponderada. “Assumimos que são obras efémeras. Degradam- se com a chuva, com o sol, com o sal do mar, com a vivência das pessoas. É uma pena mas tem de ser. Algumas já estavam mesmo muito degradadas”, explica Sofia. Além disso, apesar de ser sempre surpreendente andar na rua e encontrar paredes colori- das aqui e ali, sempre com um estilo diferente, o festival sabe que há um limite para a ocupação do espaço público.
As mudanças fizeram- se. Na avenida marginal, nem todos gostaram de ver Pastel a pintar o seu mural florido sobre a obra que os Arm Collective ali tinham feito em 2011. No Forno da Cal, em São Roque, o artista italiano que assina com o nome 1501 também está a reocupar uma parede. Encontrámo- lo, no final da semana, todo pintalgado, das pontas dos pés às pontas da parede, a pintar formas circulares montado num elevador. Em frente ao Museu Machado de Castro, uma instalação de João Valente e Maria Pedro Olaio substitui este ano a peça em acrílico de Jorge Santos que tanto sofreu com o sol e que acabou por cair da parede.
Os murais são também as peças que a população conhece melhor. E que, gostando mais ou menos, acaba por adotar como suas. Às vezes até antes de estarem prontos, como aconteceu com a peça de Freddy Sam, na Rua da Solidariedade, na Lagoa. Freddy queria fotografar um rapaz da rua e desafiou Rodrigo, de 16 anos. O Rodrigo levou o irmão João e o amigo Cláudio e foram para o porto tirar fotografias junto ao mar. Depois, como Freddy precisava de um sítio onde guardar o material durante a noite, acabou por conhecer a mãe dos rapazes. Graça Rebelo não sabia falar inglês mas lá se entenderam: “Disse- lhe para deixar ali o material, a chave está na porta, é só entrar. E também era eu que lhe fazia a comida, porque ele é vegetariano. Uns legumes, umas verduras. Acho que ele gostou. E ao final do dia fazia- lhe sempre um bolinho.”
Durante uma semana, Ricky ( na família todos o tratavam pelo seu nome verdadeiro, Freddy Sam é o nome com que assina as peças) foi mais um elemento naquela casa em que, entre crianças e adultos, já moram oito pessoas. Vinha comer, descansava ali um bocadinho durante a tarde, usava o computador, brincava com os netos de Graça, “às vezes até cozinhava connosco”, e, depois do dia de trabalho, era o Rodrigo que lavava os pincéis. “Todas as tardes íamos ali ver o que ele tinha feito.” E houve bastante falatório em torno da tira dourada que Freddy Sam pintou em cima das cabeças dos rapazes. Graça não esconde o orgulho por ter feito parte da obra, por ter ajudado, por ser amiga de Ricky no Facebook. E manteve- se imune às invejas dos vizinhos. “Nem todos têm os filhos numa pintura na parede, não é?”