Diário de Notícias

O agosto mais longo da presidênci­a de Dilma

O mês, por tradição, mais cruel da política brasileira está cheio de perigos para o governo. O impeachmen­t da presidente andará na boca dos tribunais, do Congresso, das ruas

- J OÃO A L MEI DA MOREIRA, S ã o Pa u l o

Madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954, sede do governo no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. Do quarto do presidente, ouve- se um estrondo, o mais comentado e documentad­o estrondo da história do século XX brasileiro. Família e colaborado­res precipitam- se para o local: Getúlio Vargas, o principal presidente da história do país, suicidara- se com um tiro no coração. Começava a maldição do mês de agosto.

Há quem discorde do parágrafo acima num ponto: o principal presidente do Brasil foi Juscelino Kubitschek, inventor de Brasília e chefe de Estado no período mais próspero da história recente do país. Pois JK, como ficou conhecido, percorria a Rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo e Rio de Janeiro, quando o seu Chevrolet Opala chocou com um pesado causando- lhe a morte no dia 22 de agosto de 1976.

Jânio Quadros, defendem académicos, teria potencial político para ser um presidente ainda mais influente do que Getúlio e JK, mas, por culpa da pressão de “forças terríveis”, como escreveu na carta de despedida lida perante o Congresso, renunciou ao cargo a 25 de agosto de 1961.

Num dos mais místicos países do globo, acredita- se que agosto pode mudar o rumo da história. A racional Dilma Rousseff não verá motivos para se preocupar com supostas maldições getulianas, mas as ameaças ao seu governo que estes 31 dias apresentam são terrenas. Tribunais Para começar, estão marcadas para agosto decisões do Tribunal de Contas da União ( TCU) e do Tribunal Superior Eleitoral ( TSE) que podem abrir brechas para impeachmen­t. O TSE vai ouvir Ricardo Pessoa. O líder do cartel de construtor­as que subornava diretores da Petrobras e partidos políticos afirmou no seu acordo de delação premiada que financiou as campanhas de Dilma em 2010 e 2014 em troca de favores nas licitações de obras da petrolífer­a estatal.

Caso o empresário mantenha o seu depoimento, a oposição, liderada pelo Partido da Social Democracia Brasileira ( PSDB), vê motivo para que o segundo classifica­do nas eleições de 2014, o seu presidente Aécio Neves, assuma o Pla- nalto. Dilma alegará que não tinha conhecimen­to da origem ilícita do dinheiro. O TSE decide.

Por outro lado, o TCU encontrou irregulari­dades – “pedaladas”, na gíria local – nas contas do orçamento de 2014. Pediu explicaçõe­s e recebeu do governo uma extensa resposta assinada por quatro ministros e pelos três presidente­s dos bancos estatais.

Caso as contas sejam rejeitadas do ponto de vista técnico – é essa a ideia generaliza­da dos observador­es –, serão posteriorm­ente analisadas do ponto de vista político num Congresso cada vez mais hostil a Dilma. Congresso O Congresso, que goza só até este fim de semana duas semanas de pausa, volta amanhã com o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do Partido do Movimento da Democracia Brasileira ( PMDB), a prometer uma agenda ainda mais hostil à presidente, depois de ter rompido com o governo por conta própria.

“Com o seu prestígio popular no volume morto, Dilma Rousseff tem todos os motivos para estar preocupada com o Congresso depois da pausa parlamenta­r”, alertou o jornal O Estado de S. Paulo em editorial titulado “Esperando agosto”.

Cunha, e também Renan Calheiros, líder do Senado, acreditam que Dilma está por trás da inclusão dos seus nomes na Operação Lava- Jato, que investiga o Petrolão. Lava- Jato A Operação Lava- Jato, de facto, aperta o cerco ao núcleo político do esquema de corrupção. Mas além do principal aliado na coligação, o PMDB, também dirigentes do Partido dos Trabalhado­res ( PT), de Dilma, podem ser atingidos e chamuscar, por tabela, a presidente, dia após dia mais acossada por uma população mobilizada a favor da tese do impeachmen­t. Nas ruas, os movimentos Revoltados On- Line e Vem para a Rua, que em março reuniram milhões contra o governo, prometem voltar a protestar em força. Mas terão de enfrentar o contra- ataque: estão agendadas também manifestaç­ões pró- governo de sindicalis­tas e do Movimento dos Trabalhado­res Rurais Sem Terra.

“As marchas ameaçam elevar a temperatur­a da crise até ao ponto de ebulição. Nos dois lados, começam a surgir temores de que o Brasil siga o caminho da Venezuela, com a radicaliza­ção de posições e a possibilid­ade de confrontos nas ruas”, defende Bernardo Mello Franco, colunista da Folha de S. Paulo.

O primeiro protesto a favor do impeachmen­t está marcado, não por acaso, para exatos 23 anos depois de outro que fez que Collor de Mello, o primeiro presidente eleito pós- redemocrat­ização, começasse a cair, noutro agosto que mudou o rumo do país.

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