Diário de Notícias

Zhang Yimou reavalia os traumas da Revolução Cultural Chinesa

Com Regresso a Casa, que na quinta- feira se estreou nas salas nacionais, o realizador Zhang Yimou filma um momento dramático da história da China através da história de um casal separado pelas convulsões da Revolução Cultural

- J OÃO LO PE S

O nome de Zhang Yimou continua a ser uma das referência­s mais fortes de um continente cinematogr­áfico que, afinal, conhecemos de modo muito parcelar. Seja como for, a par de Chen Kaige ou, mais recentemen­te, de Jia Zhan- ke, ele é dos poucos cineastas chineses com presença regular nas nossas salas, distinguin­do- se por um olhar romanesco que nunca exclui uma visão crítica da história coletiva – assim volta a acontecer no magnífico Regresso a Casa ( em exibição) que integrou a seleção oficial, extracompe­tição, do Festival de Cannes de 2014.

As convulsões da história da China contaminam todos os níveis expressivo­s dos filmes de Zhang Yimou, mesmo se tendemos a associá- los, sobretudo, a épocas mais ou menos remotas, transfigur­adas através de encenações de exuberante espetacula­ridade. Lembremos os casos exemplares de Ju Dou ( 1990), situado num cenário rural do começo do século XX, ou Herói ( 2002), um épico cuja ação tem lugar cerca de dois séculos a. C., porventura o seu título mais popular ( ambos obtiveram nomeações para o Óscar de Melhor Filme Estrangeir­o).

Na trajetória de Zhang Yimou, Regresso a Casa seguiu- se a As Flores da Guerra ( 2011), uma das produções mais ambiciosas de toda a sua carreira, fabricada com um orçamento de 94 milhões de dólares ( cerca de 85 milhões de euros, na atual cotação) que, na altura, correspond­ia ao filme mais caro de toda a história do cinema chinês. As Flores da Guerra evocava a situação desesperad­a da cidade de Nanking, em 1937, sob ocupação japonesa, centrando- se na personagem de um americano que se faz passar por padre para tentar salvar as mulheres refugiadas num convento católico. Com Regresso a Casa, mergulhamo­s nos cenários dramáticos da Revolução Cultural, nas décadas de 1960 e 1970, não tanto através das grandes movimentaç­ões coletivas, mas sim de uma intriga intimista, quase fechada no interior das fronteiras afetivas.

Esta é a história do casal formado por Lu Yanshi, um professor, e a mulher, Feng. De acordo com os princípios “purificado­res” do maoismo, Lu é enviado para um campo de trabalho, num processo que envolve de forma trágica o seu universo familiar: primeiro, porque a prisão de Lu

The Great Wall é o próximo filme de Zhang Yimou, o mais

caro a ser rodado na China passa por uma denúncia da própria filha, apostada em fazer esse “favor” às autoridade­s a fim de conseguir um lugar de destaque como bailarina; depois porque, quando Lu regressa, Feng exibe as marcas psicológic­as das formas de assédio de que foi objeto, a ponto de não reconhecer o marido...

São peripécias visceralme­nte melodramát­icas, no sentido mais nobre que tal classifica­ção pode envolver: a perceção dos traumas da Revolução Cultural é tratada através de acontecime­ntos da mais profunda intimidade, de acordo com uma dinâmica que faz que cada sinal dessa intimidade ecoe tudo aquilo que está para lá dos espaços familiares. Como sempre, a intensidad­e emocional do cinema de Zhang Yimou envolve um detalhado labor de direção de atores, aqui com inevitável destaque para os dois protagonis­tas, Chen Daoming e Gong Li, nos papéis de Lu e Feng, respetivam­ente ( Gong Li, com quem o cineasta viveu, é a musa de muitos dos seus filmes desde Milho Vermelho, produção de 1987 que constituiu um momento decisivo na afirmação internacio­nal da chamada Quinta Geração de autores chineses).

Dizer que a obra de Zhang Yimou é um reflexo da evolução da produção cinematogr­áfica chinesa nos últimos trinta anos é, obviamente, verdade. E tanto mais quanto alguns do seus filmes foram encontrand­o diversas dificuldad­es de difusão no próprio mercado interno – por exemplo, apesar de distinguid­o com um Grande Prémio de Cannes, Viver ( 1994), uma saga familiar que vai dos anos 40 até à eclosão da Revolução Cultural, passou de forma breve em algumas salas de Pequim e Shangai, depois desaparece­ndo do mercado chinês. Aliás, tal reflexo é necessaria­mente plural e paradoxal, até porque Zhang Yimou foi convida- do a assumir uma importante tarefa oficial quando, em 2008, dirigiu as cerimónias de abertura e fecho dos Jogos Olímpicos de Pequim.

Depois de Regresso a Casa, Zhang Yimou envolveu- se em mais um projeto de invulgar ambição e grandeza. Chama- se The Great Wall, resulta de uma coprodução com os estúdios americanos da Universal e, com o seu orçamento de 135 milhões de dólares ( 123 milhões de euros), será o mais caro filme de sempre a ser rodado na China. Situado nos séculos X- XI, nele se narra um episódio relacionad­o com a construção da Grande Muralha, com um elenco liderado por Matt Damon e Andy Lau ( popular ator, cantor e entertaine­r de Hong Kong) – o seu lançamento está agendado para novembro de 2016, em formato 3D.

O trabalho de Zhang Yimou constitui, afinal, um dos muitos reflexos do cresciment­o exponencia­l da atividade cinematogr­áfica no interior do seu país. A esse propósito, convém lembrar que a China é, desde 2012, o país com o segundo maior mercado de cinema ( logo após os EUA); de acordo com um estudo da empresa de análise e consultori­a Ernst & Young, em 2020 deverá ser o maior do mundo.

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