Diário de Notícias

A noite em que Caetano e Gil dançaram com a lua azul

Eles vieram da Bahia e por uma noite voltaram lá, para cantar como poucos o jeito que a Bahia tem. Canções de vozes cheias

- MI GUEL MARUJO

Imperturbá­veis apesar do vento, cúmplices nos gestos e nas palavras: dois violões e duas vozes Vamos ao meio do caminho para apontar a história toda: já ia o concerto na sua hora, quando Gilberto Gil fez do violão percussão e a voz foi o instrument­o que soou mais alto. “Não tenho medo da morte mas sim medo de morrer.” E de um público fácil de convencer, que reagia quase instintiva­mente ao repertório, finalmente veio o arrebatame­nto. Aplausos de pé, e mais soltos ficaram Caetano Veloso e Gilberto Gil em palco, no Parque dos Poetas, em Oeiras.

Um e outro ouviram- se, respiraram as palavras e os acordes de cada um, numa cumplicida­de de vozes e gestos. Dois amigos que não ficam pela metade. São duas vozes e dois violões, muitas vezes só um violão e uma voz só, que encheram na noite de sexta- feira um estádio, em Oeiras, onde Caetano e Gilberto se celebraram em Dois Amigos, Um Século de Música, a digressão que festeja 50 anos de carreira de cada um deles.

Num concerto em que o vento passou pelas trovas de um e outro, Caetano e Gil seguiram imperturbá­veis, completand­o as sílabas, acrescenta­ndo a expiração, soletrando o gesto, atentos ao que o outro dizia e fazia. E indiferent­es ao vento e ao murmúrio constante de um público que, por vezes, parecia mais preocupado em contar as férias ou as fotos do Facebook. Eles, Gil e Caetano, um de 73 anos, o outro quase a fazê- los, vieram da Bahia e por uma noite voltaram lá, para cantarem como poucos o jeito que a Bahia tem.

Com o recolhimen­to que pedia a canção Não Tenho Medo da Morte, a tal do meio do caminho, Gilberto espantou uma plateia que, por fim, se concentrou na música. E que viria a dançar e a acompanhar o alinhament­o que se seguiu até ao final, mesmo nas canções menos óbvias. Logo depois Gilberto pediu “canta Lisboa” em Se Eu Quiser Falar com Deus, e Lisboa cantou, enquanto em palco um e outro pegavam nas músicas de um e outro ( ou de outros) e faziam- nas suas, como É Luxo Só, de Gil, mas também em De Manhã, de Veloso e de Maria Bethânia.

O alinhament­o arrancou com os anunciados Back in Bahia e Coração Vagabundo – como Gil tinha antecipado na sua conta no Spotify – e prosseguiu com Tropicália e Marginália II. Em noite de lua cheia azul, Terra parecia falar dessa lua: “Porém lá não estavas nua/ E sim coberta de nuvens...” Nada que esmorecess­e o público ( aquele que, pelo menos, não se distraía durante todas as canções), que começava a trautear os versos dos errantes navegantes sen- tados com os seus violões, ou os passos de Caetano, que se levantou da cadeira em Andar com Fé e foi à boca do palco dançar. E alguma plateia sentada também pulou das cadeiras.

Foi esse público que ouviu de seguida Nine out of Ten, Tonada de Luna Llena e Tres Palabras, variações noutras línguas que não se limitam a responder a uma plateia europeia ( por onde anda esta digressão), mas explicam o percurso destes dois baianos universais. Os exílios em Londres, o reconhecim­ento internacio­nal, mas mais ainda a experiment­ação sonora a que nunca fugiram estes dois amigos em 50 anos de carreira.

À vez, a quatro mãos, em Oeiras, foi essa a celebração. Se a fé não costuma falhar, como diz a palavra da canção, a dança, essa, foi certeira: o palco despojado, Caetano e Gil, um de preto, o outro de branco, ocupam os tempos com os corpos em movimento.

Já se disse: foi Caetano, o gaiato, quem começou por se levantar a puxar passos de um jeito seu, foi Gilberto quem deixou, já no tema final do encore, A Luz de Tieta, o palco a dançar. A Bahia tem um jeito, ouviu- se em Terra. Estas duas metades de música, abraçadas no final sem qualquer artifício que não o da amizade, têm jeito – e fizeram a lua azul dançar.

Quantos filmes do nosso presente, aqui e agora, serão incensados daqui a dez anos? Ou daqui a vinte anos? No século XXII? Escusado será dizer que ninguém possui qualquer chave mágica capaz de responder a tais questões, do mesmo modo que seria pueril celebrar ( ou denegrir) um filme em função de especulaçõ­es sobre o seu futuro.

Em todo o caso, podemos colocar a questão de outro modo: como é que os filmes que acabam por encontrar um lugar canónico na história do cinema foram recebidos na altura do seu lançamento? Será preciso lembrar o caso de O Mundo a Seus Pés ( 1941), de Orson Welles, hoje em dia universalm­ente re - conhecido como momento emblemátic­o de e mergênci a da modernidad­e cinematogr­áfica? Será preciso sublinhar que as suas discretas receitas de bilheteira foram acompanhad­as por algumas vozes pouco entusiásti­cas, incluindo o lendário crítico James Agee?

Peço ao leitor que não pense que estou à procura de fundamento para uma qualquer “razão” perante a qual os outros deveriam remeter- se ao silêncio. Um pouco de acordo com a máxima de Jean Renoir, segundo a qual “cada um tem as suas razões”, valerá a pena dizer que há filmes que, na sua indesmentí­vel singularid­ade, nos despertam a sensação intensa, entre o racional e o intuitivo, de que nenhum futuro os apagará das memórias cinéfilas. Mais do que isso:

Linguagem

links. Rever Adeus à Linguagem em DVD – em imagens “normais” de 2D – envolve um fascinante efeito complement­ar. De facto, compreende­mos que, seja qual for o aparato técnico, Godard reage à mascarada de transparên­cia que a televisão põe em prática, mostrando e demonstran­do que colocar em cena o fator humano é um desafio renovado que envolve a paciente discussão dos seus próprios meios de expressão. Mesmo que o sentimento de humanidade possa passar pelas belíssimas imagens do seu cão Roxy.

Adeus à Linguagem: cinema invulgar nas salas ou em DVD

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