Diário de Notícias

Prescreva- se o mar

- Pedro Bidarra, patrão de costa

F. Scott Fitzgerald, Esqre., c/ o Charles Scribners & Sons, New York City Caro Sr. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby com a sua charmosa e arrebatado­ra dedicatóri­a chegou na exata manhã em que eu, à pressa, saí para uma viagem no mar aconselhad­a pelo meu médico. Deixei- o assim por cá e só o li quando regressei, o que aconteceu há apenas uns dias. No entanto, já o li três vezes. E não estou no mínimo influencia­do pelas suas observaçõe­s acerca da minha pessoa quando lhe digo que o livro me interessou e excitou mais do que qualquer novo romance que eu tenha lido, inglês ou americano, em anos. Quando eu tiver tempo gostaria de escrever- lhe um pouco mais para dizer exatamente porque é que este me parece um livro extraordin­ário. De facto, parece- me que se trata do primeiro passo que a ficção americana dá desde Henry James... Já agora, se alguma vez tiver contos que lhe pareçam adequados à Criterion, gostava muito que mos deixasse ver. Muito agradecido, o seu atencioso, T. S. Eliot Nesta deliciosa carta o que me saltou à vista foi o facto de o médico de T. S. Eliot lhe ter prescrito uma viagem de barco. Nunca nenhum médico me aconselhou o mar. Já me aconselhar­am Ixel 25, Prozac, Surmontil 25, Sertralina 50, Xanax, Medipax, um muito bom para as insónias com efeito em forma de curva de Gauss cujo nome me escapa – cresce a meio da noite e des- vanece pela manhã –, Aerius, Lepticorti­nolo, Sinutab II, naproxeno gastrorres­istente, ibuprofeno, diclofenac, Nexius, corticoide­s em aerossol, pó e spray, Ben U Ron, aspirinas, todas as amoxicilin­as ( com e sem ácido clavulânic­o) e os seus primos e primas. Mas o mar nunca. Nunca nenhum médico me disse “Ó homem, vá mas é prò mar e deixe- se de mariquices.”

Os meus médicos são como eu. São deste tempo que é o tempo das lamelas, dos pingos, dos comprimido­s e dos aerossóis ( felizmente o tempo do supositóri­o já lá vai). As doenças, salvo uma ou outra mais moderna, é que são as de sempre. Eu tenho bronquite e taquicardi­a, como o Eliot ( e é tudo o que temos em comum), sou hipocondrí­aco como o Darwin, o Tennessee Williams, o Proust, o Hans Christian Andersen e o Larkin, só para citar alguns com quem nada mais tenho em comum, e sou dado à pinga como o Fitzgerald ( com quem também não tenho mais semelhança).

Quando dei com esta carta do Eliot, a agradecer o exemplar do Great Gatsby que Fitzgerald lhe tinha enviado, pensei na minha gaveta dos comprimido­s e de como não se compara a um paquete, nem a um veleiro, nem a um barco a remos, nem sequer a um colchão repimpa; e lembrei- me de que nunca estive doente no mar. Nunca! Nem um espirro.

Eu sou patrão de costa, que é o título que vai com a carta de condução de embarcaçõe­s e o único que tenho que soa bem. Patrão de costa não é, no entanto, o máximo. O máximo é patrão de alto mar, o verdadeiro título de lobo, a carta dos ad hoc( s), dos que se aventuram, ou aventurava­m, pelo mar aberto, só com bússola, sextante e estrelas. Sem GPS que é coisa de meninos.

Ainda assim, sendo apenas patrão de costa, e não podendo por isso navegar sem costa à vista, fiz travessias sem a ver, ainda antes de nos chegar o GPS. Atravessar o mar sem ver terra, armado apenas com a fé nos nossos cálculos e na matemática, é coisa que dá medo. Na época era sempre eu que fazia os cálculos. Ou então refazia- os, quando outros os faziam primeiro; para ter a certeza. Os outros, com mais destreza, ocupavam- se do leme e das velas, mas dos cálculos, de traçar o rumo, era eu. Eu, que nunca fui bom a matemática, nunca errei um rumo ( que me lembre). A razão era simplesmen­te: o medo. Que o mar dá medo.

A vez que tive mais medo, em toda a minha vida, foi no mar. Durante uma tempestade que nos apanhou logo à saída de Gibraltar e que nos empurrou para o Norte de África impedindo- nos de voltar pra trás ou de entrar em qualquer porto. Fomos parar quase à Tunísia. Passei a noite amarrado ao barco por um arnês, um veleiro de 35 pés, e encharcado pelas vagas de metros que entravam pela popa e varriam todo o convés. O meu amigo N., firme, agarrado à cana do leme a endireitar o barco que ameaçava virar a cada vaga que descíamos, nunca esmoreceu, mas tinha tanto medo como eu. E o mesmo posso dizer do meu amigo A., que ia voando borda fora quando estava a rizar a vela maior. Tinha lá ficado se não estivesse amarrado ao mastro já que era praticamen­te impossível, naquelas condições, salvar quem quer que tivesse caído ao mar. Outros dois dormiam lá dentro, nas cabinas, de medo. O pior foi a noite negra, o preto assoprado, pavoroso e líquido, que a cada vaga nos tentava engolir. Nunca tive tanto medo durante tanto tempo, quase 24 horas.

Depois passou como se nada se t i vesse passado e, de manhã, a água parecia azeite, e os golfinhos “O mar dá medo e dá paz. As duas coisas. E nada entre elas. Quando está tudo calmo e sereno dá- nos tanta paz que nunca a senti maior do que no mar” apareceram. Uma calma imensa depois de toda aquela tempestade. Lembro- me de olhar incrédulo para o contraste. E o mar olhava de volta para mim, azul, e perguntava- me com uma grande lata “O que é que fiz?”.

Ia de Gibraltar para as Baleares mas nunca cheguei lá. Saí em Cabo de Palos, apanhei um comboio para Madrid e fui para a movida que era coisa que se fazia com os pés na terra.

O mar dá medo e dá paz. As duas coisas. E nada entre elas. Quando está tudo calmo e sereno dá- nos tanta paz que nunca a senti maior do que no mar. Sem ser no mar só medicado. Mas não é a mesma paz. Não é tanta paz. O que eu amo o mar. Se não era de o voltar a receitar.

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UN BARCO NAUFRAGADO,

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