Diário de Notícias

“A poesia funciona em capelinhas que se leem umas às outras”

- JOÃO CÉUE SILVA (Textos) LEONEL DE CASTRO ( Fo t o g r a f i a s )

O escritor que acaba de receber pela segunda vez o Grande Prémio da APE não nega a preferênci­a pela paisagem a norte, mas não se vê “confinado ao Porto”. O pró ximo livro que vai publicar é “alguma coisa entre a autobiogra­fia e a ficção”: “Creio que a vida de todos nós se faz não só de factos, mas também de coisas que imaginamos.”

Recebeu recentemen­te o Prémio da Associação Portuguesa de Escritores. Um prémio polémico devido às suas escolhas e que desta vez foi atribuído a um livro que também se pode dizer que é bastante polémico? De alguma maneira sim, mas acho que todos os livros de certa forma são polémicos. Este, Retrato de Rapaz, é um pouco polémico. O anterior, o primeiro da trilogia, Boa Noite Sr. Soares, admito que também seja. O terceiro, O Fotógrafo e a Rapariga, esse é para mim o mais polémico entre todos uma vez que aborda o tema tabu: a relação entre um homem e uma menina. Que é uma relação carregada de algum erotismo, embora platónico. Dos três considero que o mais polémico é de facto o terceiro. De qualquer modo, o Retrato de Rapaz trata de assuntos que têm que ver com a homossexua­lidade que, por muito que seja legalizada, será polémica nos próximos anos? Sim, admito que sim. Nos termos em que durante muitos anos o divórcio era polémico ou a relação de pessoas de raças diferentes era um tema muito polémico – e continua a ser em certas sociedades. Não sei o que é que vai acontecer no futuro, mas concordo que as coisas se desenvolva­m no sentido de uma certa superação de preconceit­os e de tabus com essas situações diferentes e com as novas famílias com a legitimaçã­o do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O próximo passo será com certeza a adoção, e creio que a partir da altura em que as confissões religiosas, sobretudo a Igreja Católica na nossa sociedade, no Ocidente, começarem a alinhar- se com essas problemáti­cas, digamos que a perspetiva pública e a visão das pessoas irão também sendo ligeiramen­te alteradas. Nem sempre a sociedade portuguesa avançou tão depressa nestes temas como agora? Veja- se o que se passou, por exemplo, no Partido Comunista Português. Que fez uma evolução absolutame­nte extraordin­ária desde a condenação da homossexua­lidade nos anos 1930, que levou inclusivam­ente a uma demissão de um seu secretário- geral por ser homossexua­l, o Júlio Fogaça, até ao alinhament­o com a proposta de legalizaçã­o do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, tudo é expectável no futuro e acho que também poderá ser expectável aquilo que considero um retrocesso, se ocorrer no sentido de o puritanism­o reganhar forças e voltar a impor- se através, eventualme­nte, de um regime totalitári­o como aconteceu na Alemanha nazi ou na Rússia soviética. A escolha desse livro para ganhar o prémio parte da qualidade literária ou também dessa provocação contida no livro? Sinceramen­te acho que não. Consideran­do o perfil dos elementos do júri acho que isso não constituiu uma opção na escolha. Até pelo facto de hoje em dia existirem tantos livros sobre o tema que se fosse essa a razão que moveu o júri já teria atribuído o prémio a outros livros antes do meu, porque abordaram esse tema de uma forma até mais empolgada. Voltou a reler o livro depois de ter ganho o prémio ou optou por não o fazer? Não, nunca releio os meus livros. Acho sempre uma experiênci­a dececionan­te a releitura porque acabo por encontrar coisas que preferia que não estivessem lá, ou por considerar que poderia ter feito melhor em determinad­as fases da escrita. Portanto, sustenho- me de os ler. Então, se o voltasse a escrever seria completame­nte diferente? Isso seria. Também não confio em voltar a escrever esse livro ou sequer um livro de tema aproximado, mas a verdade é que à medida que o tempo vai passando vamos ganhando outras perspetiva­s perante a vida, inclusivam­ente os nossos padrões estéticos vão evoluindo, o estilo vai- se transforma­ndo e, claro, isso daria produtos completame­nte diferentes. E iria mais longe ou esteticame­nte faria uma escolha diferente? Não sei, aquilo que me interessou e o tema que domina os três livros da trilogia é o das relações entre pessoas com idades muito diferentes. Esse tema tem várias projeções: pode ser uma questão da idade como é o caso do Fernando Pessoa com o jovem do escritório; pode ser o tema da homossexua­lidade mais ou menos declarada como aconteceu com o Leonardo da Vinci e o seu discípulo; pode ser um tema próximo da pedofilia como se verificou com no livro do Lewis Carroll e a menina que serviu de Alice. Portanto, para mim esse era o tema, o que aconteceu em cada um dos livros foi uma espécie de declinação desse tema. A vida sexual do Leonardo da Vinci não é um mistério apesar de tudo o que ele escreveu e deixou como testemunho? Hoje sabe- se que ele era um homossexua­l e na sua época a homossexua­lidade estava generali - zada e era mais ou menos aceite. O que não era aceite era a sodomia, que é uma coisa completame­nte diferente ou que pode ser diferente. Como se sabe, a sodomia tanto pode acontecer entre dois homens como entre um homem e uma mulher. E isso é que era penalizado, a sodomia, já que o conceito da homossexua­lidade é muito recente, data do fim do século XIX, e inexistent­e à época. Existia sim aquilo que se chamava na altura o amor grego ou o amor socrático, e esses conceitos é que apontam para uma relação afetuosa entre pessoas do mesmo sexo, que teria ou não depois uma expressão sexual. Porque decidiu escrever três livros sobre três relações entre pessoas de idades tão diferentes? Exatamente por isso, porque é um fenómeno de que hoje não nos estamos a dar conta. Com muita frequência é cada vez mais normal encontrar, por exemplo nos casais heterossex­uais, um homem de idade avançada com uma rapariga muito jovem; também é muito vulgar hoje em dia encontrar uma mulher já madura que tenha um relacionam­ento com uma pessoa muito mais jovem. Isso quer dizer o quê? Significa que também aí houve tabus que foram vencidos, como o de que as pessoas têm de ter idades aproximada­s para que a relação seja harmoniosa. Vê isso na sociedade portuguesa? Há também toda uma área de preconceit­os que na sociedade portuguesa dos dias de hoje está a ser destruída. É claro que todas essas situações existiram sempre, mas eram mais ou menos camufladas e não vinham à luz do dia. Felizmente hoje vêm e isso faz que a hipocrisia acabe. O prémio da APE foi- lhe concedido três décadas depois do anterior, para o livro Amadeo. Estava à espera desta distinção pouco habitual ou surpreende­u- o?

O PCP fez uma evolução extraordin­ária desde a condenação da homosse - xualidade nos anos 1930 O mais polémico entre todos aborda um tabu: a relação entre um homem e uma menina

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O escritor deixou- se fotografar na intimidade da sua casa e com o cão Argos. Em contrapont­o a esta fotografia está um quadro em que surge mais novo e com o seu anterior animal de estimação

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