Diário de Notícias

Listen to Me Marlon: Brando vê- se ao espelho

Listen to Me Marlon parte de exercícios de reflexão e autorrefle­xão que Marlon Brando gravou ao longo da vida

- J OÃO LO PE S

Quando Marlon Brando faleceu a 1 de julho de 2004 ( contava 80 anos), quase todos os obituários reconhecer­am que, muito para além dos filmes, o ator permanecer­ia como uma figura de muitos enigmas por decifrar – mesmo quando as convulsões da sua vida privada foram motivo de notícias mais ou menos especulati­vas, ele foi, afinal, uma personalid­ade reclusa, resistente a todas as formas de voyeurismo mediático. Daí o interesse que tem envolvido a revelação do documentár­io Listen to Me Marlon, anunciado, precisamen­te, como um retrato do ator elaborado a partir dos seus próprios testemunho­s.

Apresentad­o em janeiro no Festival de Sundance, estreado há dias em salas de Nova Iorque e Los Angeles ( não consta, para já, nas listas de distribuiç­ão em Portugal), Listen to Me Marlon não correspond­erá exatamente a um retrato nunca visto. Em todo o caso, tendo em conta as informaçõe­s disponívei­s, poderemos dizer que se trata de uma antologia de informaçõe­s... nunca ouvidas! De facto, a equipa dirigida pelo realizador Stevan Riley trabalhou a partir de uma coleção de registos sonoros de Marlon Brando, geridos pelos seus herdeiros e até agora totalmente inéditos.

Riley começou por pensar nu - ma abordagem mais convencion­al: por um lado, revisitand­o momentos emblemátic­os da carreira do ator, desde a revolução na arte de representa­r concretiza­da em tí- tulos como Um Elétrico Chamado Desejo ( 1951) ou Há Lodo no Cais ( 1954), ambos de Elia Kazan, até aos grandes papéis da maturidade, incluindo O Padrinho ( 1972), de Francis Ford Coppola, O Último Tango em Paris ( 1972), de Bernardo Bertolucci, e Apocalypse Now ( 1979), de novo sob a direção de Coppola; por outro lado, recorrendo a depoimento­s de umas quatro dezenas de pessoas que, de uma maneira ou de outra, tinham partilhado a intimidade de Brando, incluindo o seu amigo Harry Belafonte, Jay Kantor ( o primeiro agente), Ellen Adler ( filha da professora Stella Adler), familiares e até trabalhado­res que assumiram diversas tarefas em sua casa.

A relação de amizade do produtor John Battsek ( também li - gado, por exemplo, a À Proc ura de Sugar Man) com Austin Wil - kin, um dos responsáve­is pela gestão do arquivo de Brando, veio transfigur­ar todo o projeto. Na prática, Riley foi descobrind­o que os registos sonoros desse arquivo estavam longe de ser meras cópias de entrevista­s. Em boa verdade, revelando aquilo que Riley interpreta como um misto de narcisismo e profunda inseguranç­a, Brando gravava obsessivam­ente as mais diversas experiênci­as: diários íntimos, exercícios de meditação, conversas com jornalista­s, etc. Em declaraçõe­s por ocasião da estreia, citadas pela revista Variety ( 28 de julho), Riley considera que o confronto com esses materiais implicou uma mudança radical na estrutura do filme: em vez de ser Marlon Brando contado pelos outros, passou a ser um exercício confes-

Em Um Elétrico Chamado Desejo revolucion­a a arte de ser ator

Como Don Corleone cria uma das figuras míticas do cinema sional, um verdadeiro Marlon Bran - do por... Marlon Brando.

O título Listen to Me Marlon ( à letra: Escuta- Me, Marlon) não é, assim, enunciado por um qualquer observador que solicite a atenção do ator. É o próprio Brando que, com frequência, aplica essa expressão no início das gravações, por assim dizer assumindo a “esquizofre­nia” de alguém que é tanto aquele que fala como aquele que escuta ( há mesmo algumas gravações com o rótulo de “auto- hipnose”). Através desse dispositiv­o emergem confissões, ora amargas ora sarcástica­s, que podem envolver temas tão particular­es como o facto de ter sido

Brando gravava obsessivam­ente as mais diversas

experiênci­as

abandonado pela mãe alcoólica (“adorava o cheiro da bebida na sua respiração”) ou a sua relação predadora com algumas mulheres (“a partir de certa altura, o pénis tem a sua própria agenda”), passando, claro, pelas ambições como ator (“tratava- se de representa­r de uma maneira nunca vista antes”).

Em tempos de tantos filmes que celebram as personagen­s digitais, “esquecendo” a verdade física dos atores, podemos apostar que Listen to Me Marlon vai ser um caso à parte. Seja como for, trata- se de redescobri­r aquele que foi, muito simplesmen­te, um dos maiores atores do século XX.

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