Diário de Notícias

“NÃO ME VEJO UM MITO E DEUS ME DEFENDA DE O VIR A SER”

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Estamos a assistir ao desapareci­mento público de muitos escritores do século XX. Ninguém fala de António Nobre, por exemplo? O caso de António Nobre é mais outra deficiênci­a de visão geográfica. Afinal, o António Nobre é muito mais falado a Norte do que a Sul. Também é muito mais ligado à paisagem do Norte do que à paisagem do Sul, mas isso compreende- se e acontece em todos os países. Por exemplo, uma poetisa de grande qualidade, a Rosalía de Castro, é muito mais falada no espaço galego do que no andaluz. O Llorca é muito mais falado no espaço andaluz do que no espaço galego: portanto, os escritores têm os seus cenários e isso justifica muita da atenção que lhes é prestada. Escritores como Aquilino Ribeiro ou Raul Brandão também não estão ignorados? O Raul Brandão continua a ser muito querido pelas gerações mais novas, sobretudo a parte mais doída da sua obra, que é um pouco preexisten­cialista e com menos que ver com a paisagem de livros como Os Pescadores ou o Portugal Pequenino. De qualquer forma aquilo que acontece é que o Raul Brandão é transversa­l a várias gerações. No caso do Aquilino, aí acho que há uma certa razão em pensar- se que esteve muito esquecido. Essa fase coincidiu com o abastardam­ento do uso do português e com uma “literatura” muito facilitist­a, aquela que agora preenche os escaparate­s das nossas livrarias; aquela em que as questões de estilo, da língua ou da formulação semântica passaram a segundo, terceiro ou quarto plano. Mas a obra está a ser toda reeditada pela Bertrand, o que significa que continua a ser uma figura indiscutív­el da nossa literatura. Foi de resto um dos nossos candidatos ao Prémio Nobel. E não houve muitos. José Saramago morreu há cinco anos. Já se sente o peso da morte sobre a sua obra? Não, no caso de Saramago. Porque além da qualidade do autor há a circunstân­cia de ter merecido o Prémio Nobel, que chamou muito a atenção para o seu nome, e há uma instituiçã­o que é a Fundação José Saramago que man- tém a chama viva. E lindamente, devo dizer. Situação que já não vejo acontecer com um poeta da estatura do Eugénio de Andrade. Sei que se vende muitíssimo mas a atenção que o público e a crítica dão à sua obra é muito menor do que a que lhe foi dada em vida. Praticamen­te desaparece­u. Isso deve- se, aponto um dos fatores, à forma miserável, grotesca e vergonhosa com que terminou a Fundação Eugénio de Andrade após a morte do poeta. Que é algo que não podemos perdoar ao anterior executivo camarário e às pessoas que estiveram à frente da fundação. O seu próximo livro é uma autobiogra­fia. A intenção foi a de mitificar- se ainda em vida? De maneira nenhuma. Não me vejo um mito e Deus me defenda de o vir a ser, pois é muito desconfort­ável conviver com uma coisa dessas. Sempre rejeitei essa dimensão, como a dimensão de Proust, e nada tenho que ver com isso. Queria esclarecer que não é uma autobiogra­fia exatamente, é alguma coisa que decorre entre a autobiogra­fia e a ficção. Quis pegar numa vida, neste caso na minha, e introduzir- lhe alguns elementos ficcionais. Coisas que eu provavelme­nte teria imaginado mas que não acontecera­m. Creio que a vida de todos nós se faz não só de factos mas também de coisas que imaginamos. Foi muito neste sentido que eu escrevi esse texto.

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