A cruzada anticorrupção da América Latina
Embora grande parte da América Latina esteja entregue a celebrações quase hiperbólicas relativas aos renovados laços diplomáticos entre Cuba e os Estados Unidos, o continente enfrenta dois grandes desafios. O primeiro – o declínio do crescimento económico em toda a região para menos de 1%, em média – tem sido longamente discutido e a explicação prevalecente é a de que a desaceleração do crescimento económico da China fez baixar os preços das matérias- primas e, consequentemente, as receitas das exportações da América Latina. Mas é o segundo – o ressurgimento da corrupção – que está a demonstrar ser mais interessante.
A América Latina tem sido assolada pela corrupção desde há séculos, tendo surgido daquilo a que o poeta mexicano Octavio Paz chamou a natureza “patrimonialista” do domínio colonial espanhol e português. A diferença, hoje em dia, é a resposta que lhe é dada, com as sociedades e as instituições a recusarem- se a permanecer cúmplices na corrupção ou a resignarem- se à sua inevitabilidade.
Esta atitude está exemplificada na proliferação de julgamentos, investigações, manifestações, convicções e demissões relacionados com a corrupção, particularmente no Brasil e na Venezuela e, em menor escala, no México e na Guatemala. Grandes escândalos têm surgido nos quatro países, com altas individualidades do governo e líderes empresariais a serem denunciados pelos meios de comunicação, pelo sistema de justiça, por governos estrangeiros e/ ou pela oposição local. Apesar de nenhum dos governos envolvidos nos escândalos cair, pelo menos não exclusivamente por causa da corrupção, a dimensão dos protestos sociais e políticos, para não mencionar as ações judiciais, é surpreendente.
A história mais chocante ocorreu no Brasil. No ano passado, numa altura em que o descontentamento era já generalizado – os protestos contra os excessos e abusos nos preparativos para o Campeonato do Mundo de futebol tinham eclodido logo em 2013 – rebentou o chamado escândalo do petrolão. Foi revelado que tinham sido transferidas enormes somas de dinheiro, diretamente ou através de empresas de construção gigantescas, da empresa pública de petróleo do Brasil, a Petrobras, para o Partido dos Trabalhadores da presidente Dilma Rousseff.
Denunciantes e testemunhas protegidas forneceram detalhes da corrupção a juízes brasileiros, que perseguiram os funcionários da Petrobras, os políticos e os CEO das empresas sob investigação. Tanto Rousseff como o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, foram acusados de corrupção e tráfico de influências. Embora Rousseff tenha conseguido manter- se no poder nas eleições de dezembro, que ganhou por uma pequena margem, não há como negar que a crise política tomou conta do Brasil, mergulhando o país numa profunda recessão.
Na Venezuela, as acusações vindas do governo dos Estados Unidos sugeriam que muitos dos líderes do país, incluindo Diosdado Cabello, presidente do Congresso e o assessor mais próximo do presidente Ni- colás Maduro, tinham não só enriquecido como o tinham feito, em parte, através de ligações com os cartéis da droga colombianos. Com a economia da Venezuela a deteriorar- se drasticamente e a violência e as violações dos direitos humanos a proliferar, Maduro foi forçado a convocar eleições para dezembro próximo. As sondagens indicam que, apesar de um sistema eleitoral manipulado, o seu partido vai sofrer sérios reveses. Pode mesmo perder a maioria no Congresso.
A situação da Guatemala não é tão dramática a nível económico, mas há uma enorme pressão sobre o presidente Otto Pérez Molina para que se demita, com as acusações de corrupção a alimentarem manifestações de rua em massa. Com efeito, embora Pérez Molina tenha sobrevivido a uma moção de destituição em junho deste ano, ele pode muito bem não acabar de cumprir o seu mandato, que termina no próximo ano. Foi já forçado a aceitar a demissão da sua vice- presidente Roxana Baldetti e de vários ministros.
A situação no México é mais complexa. O país há muito que tem uma reputação inigualável de corrupção. Mas, desde o final da década de 1990 – e especialmente depois de 2000, quando o Partido Revolucionário Institucional ( PRI), que governou durante 70 anos, foi varrido do poder – o México tem feito incursões significativas para combater a prática, pelo menos a nível federal.
Embora tenha havido quem temesse, quando o PRI voltou ao poder em 2012, que este trouxesse consigo os seus velhos hábitos corruptos, outros acreditavam que o presidente Enrique Peña Nieto era diferente. E, de certa forma, os otimistas estavam certos; ao longo dos últimos três anos, Peña Nieto empreendeu reformas pioneiras e importantes. Mas, no que respeita à corrupção, eles estavam muito enganados, um facto que se tornou evidente no ano passado, quando os meios de comunicação locais e internacionais descobriram uma série de atividades de corrupção, desde a adjudicação de contratos a amigos até à compra de casas abaixo dos preços de mercado para os mesmos amigos.
Como consequência das revelações, a popularidade de Peña Nieto caiu abruptamente. Embora o seu partido tenha conseguido manter a maioria na câmara baixa do Congresso, recebeu apenas 29% dos votos, a sua percentagem mais baixa de sempre. Os pedidos de renúncia do presidente fracassaram, mas a conclusão quase unânime é que este governo é o mais corrupto do México desde o final da década de 1980.
Muitos outros países latino- americanos estão a atravessar situações semelhantes. No Chile, Michelle Bachelet está a enfrentar a crise política mais importante da sua presidência e talvez mesmo a pior desde o regresso da democracia em 1989. Tudo começou com acusações de tráfico de influências contra o filho e a nora de Bachelet e continuou com o surgimento de outros escândalos que envolviam possivelmente ministros e outros assessores. Bachelet tentou mostrar aos eleitores que estava a levar a questão a sério, pedindo a renúncia de todo o governo ( embora vários assessores- chave tenham sido renomeados ou transferidos para novos cargos). Em qualquer caso, os seus índices de popularidade caíram pa - ra níveis extremamente baixos.
Com o aquecimento da campanha presidencial na Argentina serão feitas acusações, fundamentadas ou não, contra a presidente cessante Cristina Fernández de Kirchner, cuja riqueza líquida cresceu ao longo dos 13 anos em que ela e o seu falecido marido governaram o país. Da mesma forma, é do consenso geral que a proposta do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, para construir um canal interoceânico no seu país ( com um obscuro empresário chinês supostamente a pagar a gigantesca fatura, a qual poderá atingir qualquer valor entre os 55 e os 100 biliões de dólares) é um esquema montado para a sua família ganhar muito dinheiro.
Claramente, os imensos avanços da América Latina na consolidação da democracia ao longo dos últimos 30 anos pouco fizeram para erradicar um dos seus flagelos mais antigos. Mas existe agora uma fonte de esperança renovada: o crescimento da sua classe média, produto de 15 anos de um impressionante progresso económico e social. Esta nova classe média está a exigir uma melhor governação e não vai descansar enquanto não a obtiver.