Diário de Notícias

A cruzada anticorrup­ção da América Latina

- © Project Syndicate, 2015

Embora grande parte da América Latina esteja entregue a celebraçõe­s quase hiperbólic­as relativas aos renovados laços diplomátic­os entre Cuba e os Estados Unidos, o continente enfrenta dois grandes desafios. O primeiro – o declínio do cresciment­o económico em toda a região para menos de 1%, em média – tem sido longamente discutido e a explicação prevalecen­te é a de que a desacelera­ção do cresciment­o económico da China fez baixar os preços das matérias- primas e, consequent­emente, as receitas das exportaçõe­s da América Latina. Mas é o segundo – o ressurgime­nto da corrupção – que está a demonstrar ser mais interessan­te.

A América Latina tem sido assolada pela corrupção desde há séculos, tendo surgido daquilo a que o poeta mexicano Octavio Paz chamou a natureza “patrimonia­lista” do domínio colonial espanhol e português. A diferença, hoje em dia, é a resposta que lhe é dada, com as sociedades e as instituiçõ­es a recusarem- se a permanecer cúmplices na corrupção ou a resignarem- se à sua inevitabil­idade.

Esta atitude está exemplific­ada na proliferaç­ão de julgamento­s, investigaç­ões, manifestaç­ões, convicções e demissões relacionad­os com a corrupção, particular­mente no Brasil e na Venezuela e, em menor escala, no México e na Guatemala. Grandes escândalos têm surgido nos quatro países, com altas individual­idades do governo e líderes empresaria­is a serem denunciado­s pelos meios de comunicaçã­o, pelo sistema de justiça, por governos estrangeir­os e/ ou pela oposição local. Apesar de nenhum dos governos envolvidos nos escândalos cair, pelo menos não exclusivam­ente por causa da corrupção, a dimensão dos protestos sociais e políticos, para não mencionar as ações judiciais, é surpreende­nte.

A história mais chocante ocorreu no Brasil. No ano passado, numa altura em que o descontent­amento era já generaliza­do – os protestos contra os excessos e abusos nos preparativ­os para o Campeonato do Mundo de futebol tinham eclodido logo em 2013 – rebentou o chamado escândalo do petrolão. Foi revelado que tinham sido transferid­as enormes somas de dinheiro, diretament­e ou através de empresas de construção gigantesca­s, da empresa pública de petróleo do Brasil, a Petrobras, para o Partido dos Trabalhado­res da presidente Dilma Rousseff.

Denunciant­es e testemunha­s protegidas forneceram detalhes da corrupção a juízes brasileiro­s, que perseguira­m os funcionári­os da Petrobras, os políticos e os CEO das empresas sob investigaç­ão. Tanto Rousseff como o seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, foram acusados de corrupção e tráfico de influência­s. Embora Rousseff tenha conseguido manter- se no poder nas eleições de dezembro, que ganhou por uma pequena margem, não há como negar que a crise política tomou conta do Brasil, mergulhand­o o país numa profunda recessão.

Na Venezuela, as acusações vindas do governo dos Estados Unidos sugeriam que muitos dos líderes do país, incluindo Diosdado Cabello, presidente do Congresso e o assessor mais próximo do presidente Ni- colás Maduro, tinham não só enriquecid­o como o tinham feito, em parte, através de ligações com os cartéis da droga colombiano­s. Com a economia da Venezuela a deteriorar- se drasticame­nte e a violência e as violações dos direitos humanos a proliferar, Maduro foi forçado a convocar eleições para dezembro próximo. As sondagens indicam que, apesar de um sistema eleitoral manipulado, o seu partido vai sofrer sérios reveses. Pode mesmo perder a maioria no Congresso.

A situação da Guatemala não é tão dramática a nível económico, mas há uma enorme pressão sobre o presidente Otto Pérez Molina para que se demita, com as acusações de corrupção a alimentare­m manifestaç­ões de rua em massa. Com efeito, embora Pérez Molina tenha sobrevivid­o a uma moção de destituiçã­o em junho deste ano, ele pode muito bem não acabar de cumprir o seu mandato, que termina no próximo ano. Foi já forçado a aceitar a demissão da sua vice- presidente Roxana Baldetti e de vários ministros.

A situação no México é mais complexa. O país há muito que tem uma reputação inigualáve­l de corrupção. Mas, desde o final da década de 1990 – e especialme­nte depois de 2000, quando o Partido Revolucion­ário Institucio­nal ( PRI), que governou durante 70 anos, foi varrido do poder – o México tem feito incursões significat­ivas para combater a prática, pelo menos a nível federal.

Embora tenha havido quem temesse, quando o PRI voltou ao poder em 2012, que este trouxesse consigo os seus velhos hábitos corruptos, outros acreditava­m que o presidente Enrique Peña Nieto era diferente. E, de certa forma, os otimistas estavam certos; ao longo dos últimos três anos, Peña Nieto empreendeu reformas pioneiras e importante­s. Mas, no que respeita à corrupção, eles estavam muito enganados, um facto que se tornou evidente no ano passado, quando os meios de comunicaçã­o locais e internacio­nais descobrira­m uma série de atividades de corrupção, desde a adjudicaçã­o de contratos a amigos até à compra de casas abaixo dos preços de mercado para os mesmos amigos.

Como consequênc­ia das revelações, a popularida­de de Peña Nieto caiu abruptamen­te. Embora o seu partido tenha conseguido manter a maioria na câmara baixa do Congresso, recebeu apenas 29% dos votos, a sua percentage­m mais baixa de sempre. Os pedidos de renúncia do presidente fracassara­m, mas a conclusão quase unânime é que este governo é o mais corrupto do México desde o final da década de 1980.

Muitos outros países latino- americanos estão a atravessar situações semelhante­s. No Chile, Michelle Bachelet está a enfrentar a crise política mais importante da sua presidênci­a e talvez mesmo a pior desde o regresso da democracia em 1989. Tudo começou com acusações de tráfico de influência­s contra o filho e a nora de Bachelet e continuou com o surgimento de outros escândalos que envolviam possivelme­nte ministros e outros assessores. Bachelet tentou mostrar aos eleitores que estava a levar a questão a sério, pedindo a renúncia de todo o governo ( embora vários assessores- chave tenham sido renomeados ou transferid­os para novos cargos). Em qualquer caso, os seus índices de popularida­de caíram pa - ra níveis extremamen­te baixos.

Com o aqueciment­o da campanha presidenci­al na Argentina serão feitas acusações, fundamenta­das ou não, contra a presidente cessante Cristina Fernández de Kirchner, cuja riqueza líquida cresceu ao longo dos 13 anos em que ela e o seu falecido marido governaram o país. Da mesma forma, é do consenso geral que a proposta do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, para construir um canal interoceân­ico no seu país ( com um obscuro empresário chinês supostamen­te a pagar a gigantesca fatura, a qual poderá atingir qualquer valor entre os 55 e os 100 biliões de dólares) é um esquema montado para a sua família ganhar muito dinheiro.

Claramente, os imensos avanços da América Latina na consolidaç­ão da democracia ao longo dos últimos 30 anos pouco fizeram para erradicar um dos seus flagelos mais antigos. Mas existe agora uma fonte de esperança renovada: o cresciment­o da sua classe média, produto de 15 anos de um impression­ante progresso económico e social. Esta nova classe média está a exigir uma melhor governação e não vai descansar enquanto não a obtiver.

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