A vila mudou
ALICE VIEIRA
Quando cheguei a Cascais, na sexta- feira, apeteceu- me, infantilmente, um gelado. Daqueles enormes, a transbordar do copo, cheios de calorias.
Desde a minha infância, e sempre guiada pela mão da minha tia Clara, que em Cascais só existe um lugar para se comer gelados: o Santini ( e isto não é fazer publicidade: o Santini é uma instituição).
Para grande perplexidade, encontrei a porta fechada.
E para minha grande tristeza, uma cruz negra colada ao vidro anunciava a causa do encerramento: o Sr. Santini morrera.
Confesso: com as preocupações daquela semana toda, eu nem tinha olhado bem para os jornais. As letras gordas dos cabeçalhos e pouco mais.
É possível que nalgum deles tivesse vindo a notícia da sua morte. E daí não sei: o Sr. Santini não era artista de variedades, não era vigarista, não se abotoou com dinheiros da CEE, não fez desfalques nem entrou em negócios de corrupção: realmente, por que razão haveria a sua morte de ser notícia?
Mas, para quem passou a sua infância aqui por estes sítios, ele era uma referência.
A gente olhava para aquele italiano enorme ( pelo menos aos nossos olhos ele era enorme!) que sabia tantas histórias, que privara com reis e príncipes e tratava por tu as ex- cabeças coroadas que aqui faziam o seu reino – e era como se estivéssemos a ver, em carne e osso, uma daquelas figuras que só conhecíamos dos livros de histórias.
Para mim, o Sr. Santini era assim uma espécie de irmão gémeo do Sandokan.
Quando o Estoril ainda não estava completamente estragado, o Sr. Santini tinha a sua casa de gelados no caminho que levava ao Tamariz. Isto quando o Tamariz também ainda não estava completamente estragado, e para ele se entrava através de um pequenino portão de ferro, que dava passagem para um jardim cheio de árvores, e mesas de ferro com cadeiras, onde as famílias vinham passear e beber groselha ao fim de semana.
Atravessava- se a linha do caminho- de- ferro com muito cuidado (“isto um dia tem de ser mudado, porque é um perigo”, resmungava a tia Clara, agarrando com muita força a minha mão, coitada, se então adivinhasse o que a mudança traria, nem piava…) mas, uma vez chegados ao lado de lá, era a liberdade, a correria pelas ruazinhas do jardim, e a paragem obrigatória numa pequena vivenda ( chalet, dizia- se então) onde o Sr. Santini vendia os seus gelados únicos.
Lembro- me de um dia lá ver a filha: a minha tia Clara parou extasiada diante do bebé, exclamando que nunca vira uma criança com olhos tão bonitos e de um verde tão estranho.
Domingos a fio eu ia vendo crescer a filha do Sr. Santini, e sonhando a semana inteira com o gelado que iria comer.
No único lugar onde a tia Clara o permitia, porque “aqui eu tenho confiança: o Sr. Santini é amigo do rei de Itália!”
Depois os anos passaram, o Tamariz foi destruído, o Sr. Santini deixou o Estoril e passou para uma loja no meio de uma rua comercial de Cascais .
A filha foi crescendo e envelhecendo como todos nós, ganhando um pouco de peso como todos nós – mas guardando sempre os olhos magníficos da infância.
Às vezes, quando eu entrava na loja e a via diante da máquina registadora, pensava “há mais de quarenta anos vestias um bibe de folhos e sentavam- te ao balcão de um chalet no jardim do Tamariz, muito possivelmente nem te lembras disso!”
Agora o Sr. Santini também desapareceu.
Como o jardim do Tamariz, o chalet, o bibe de folhos.
Olho a cruz negra no vidro da porta e fatalmente recordo o Esteves da tabacaria. Recordação óbvia, concordo, até porque Fernando Pessoa cabe em todas as recordações.
Estamos em Agosto, é tempo de turistas, de pessoal adventício que nunca soube quem era o Sr. Santini, que decerto nem dará pela porta fechada e a cruz no vidro.
Mas, apesar de tudo, quero crer que para aqueles que nesta terra passaram parte da suas vidas e que, em crianças, olhavam para o Sr. Santini como se ele fosse o último dos heróis (“amigo do rei de Itália!", repetia a tia Clara), desde o dia da sua morte a vila mudou.