A escola de dança onde sonhar faz parte do currículo
Em fevereiro, Miguel Pinheiro foi um dos vencedores do Prix Lausanne. Agora, com 17 anos, prepara- se para viajar para a Holanda, onde tem o seu primeiro emprego como bailarino. Esta é uma das muitas histórias de sucesso da Escola de Dança do Conservatóri
Falta pouco. Por estes dias, Miguel Pinheiro anda a fazer as malas e a despedir- se dos amigos. No dia 15 apanha o avião para a Haia, na Holanda, e no seguinte apresenta- se no Nederlands Dans Theater para o seu primeiro emprego. Nem 18 anos tem. Mas isso não o assusta. Para trás ficam os anos de formação na Escola de Dança do Conservatório Nacional ( EDCN). “O estudo acabou. Agora vou ser bailarino profissional”, diz. Determinado e feliz. “Neste momento estou ansioso. Vou sair da escola, sair de baixo da asa dos pais, sair de casa, sair do país. Sou o mais novo da companhia. Tudo isso são mudanças que me causam algum nervosismo. Mas estou com vontade de ir.”
Na última semana de junho,
toda a escola estava numa agitação de ensaios. Os pequenos e os grandes juntos no mesmo estúdio, com grandes janelas, do varandim vista para o rio, cá em baixo uma multidão de pés em pontas a tiquetaquearem no chão de madeira, malhas espalhadas pelas cadeiras, uma confusão de mochilas pelos cantos. Preparava- se a apresentação de final de ano – La Ventana, um bailado de August de Bournonville, remontado por Frank Andersen e Eva Kloborg, no Teatro Camões – e todos queriam dar o seu melhor. Sobretudo os 25 alunos finalistas. Para eles, este é o fim de uma etapa e o princípio de uma carreira. O passo tem vindo a ser preparado no último ano. Foram feitos contactos, foi preciso fazer viagens e ir a audições, planear orçamentos, fazer escolhas.
“Hoje, as fronteiras já não são um limite. Esta geração de bailarinos sabe que pode dançar em qualquer lugar do mundo”, diz a professora Liliana Mendonça, que neste ano acompanhou de perto os finalistas da EDCN. Ouviu os seus desabafos, deu- lhes conselhos, sofreu com as suas angústias, mas sabe que eles estão prontos: “Tecnicamente, eles saem daqui muito bem preparados, seja na formação clássica seja na contemporânea. E têm uma grande maturidade. Alguns miúdos desta idade ainda não sabem que curso vão escolher. Estes estão a preparar- se para ir trabalhar no estrangeiro. Mesmo sabendo que não é uma carreira fácil e que o sucesso profissional não depende só das suas qualidades artísticas. O que lhes digo é que devem acreditar no seu sonho. Se é isso que querem, devem lutar por ele.”
O sonho do Miguel ganha forma sempre que ele sobe ao palco. Miguel Pinheiro fazia ginástica desde pequeno. “Estava no Ginásio Clube Português e fui até a um nível bastante elevado, fui federado e participei em vários concursos. Mas depois comecei a ficar um pouco saturado e foi a minha mãe que me propôs experimentar a dança por achar que eu precisava de alguma atividade que me fizesse encontrar um lado mais artístico, mais emocional, além da parte física que tem a ginástica.” Miguel não tinha qualquer relação com a dança, não tinha o hábito de ver espetáculos e não sabia muito bem no que se estava a meter. Mas gostou do desafio. Tinha então uns 12 anos e lembra- se perfeitamente da audição, feita num dia quente de junho como aquele em que nos encontramos a conversar no recreio da escola. “Ia para o 7. º ano e por isso candidatei- me ao 3. º ano, que é o equivalente aqui na escola de dança. Pediram- me aquilo que era suposto que um aluno do 3. º ano soubesse fazer. Eu não sabia. Não tinha qualquer conhecimento, não sabia a terminologia, os passos, as técnicas, não sabia nada. Tive de admitir isso, não tinha como esconder. Pediram- me então para fazer só alguns exercícios físicos, alongamentos, movimentos, e fui aceite.”
O professor Pedro Carneiro, diretor da EDCN, explica que esta situação, embora não seja comum, é normal: “Regra geral, as meninas vêm já, quase todas, com formação em dança. Os rapazes nem por isso. E isso até pode ser uma vantagem porque quando já tiveram uma formação que não foi a melhor trazem maus hábitos que depois é preciso tirar.” Nos rapazes, mais do que saber dançar, “o que é importante são as características físicas, terem as proporções certas, flexibilidade, coordenação...”
A Miguel ajudou- o o facto de ter feito ginástica. O resto foi encontrando aos poucos. “Não tinha esse sonho de ser bailarino desde pe- quenino, foi uma coisa que eu descobri aqui, com os professores e com os colegas. Neste momento, já não tenho dúvidas. Houve um momento em que tive de fazer a escolha e a escolha foi feita.”
Liliana Mendonça, também ela ex- aluna da EDCN e bailarina que interrompeu a sua carreira em 2011 para ser ali professora de repertório contemporâneo, fala de uma “seleção natural”: “Há jovens que têm o sonho de ser bailarinos, mas quando se deparam com a dificuldade inerente à formação, que é mesmo de alta competição, acabam por desistir, ou por lesões ou devido a um cansaço emocional e físico. Há outros, poucos, que não têm avaliação suficiente para continuar. Mas a partir do momento em que entram na fase final, no secundário, eles já querem muito isto. Ou é assim ou não vale a pena.”
Para Miguel, estes últimos anos da sua formação foram, seguramente, os melhores. “Evoluí muito. Ganhei disciplina e maturidade, dentro e fora da dança. Estamos submetidos a muita pressão e isso faz- nos crescer”, diz. Nos últimos anos, a carga horária é tremenda. E a exigência maior. Além das aulas, os alunos são estimulados a participar em apresentações públicas, a fazer workshops com coreógrafos ( muitos estrangeiros) convidados pela escola, a participar em concursos internacionais. Chegam por volta das oito da manhã e não são poucos os dias em que ficam até depois das oito da noite, entre aulas e ensaios solitários. A concorrência entre os melhores alunos da turma é capaz de se tornar mais visível.
Os concursos internacionais, dos quais o Prix Lausanne é o mais mediático, foram uma das apostas ganhas desta direção da escola. “É um estímulo enorme para eles”, admite Pedro Carneiro. Miguel não tem dúvidas de que aquela semana em Lausana terá sido uma das melhores da sua vida: “Já participei em vários concursos, mas nunca tinha estado no Prix Lausanne. Foi uma semana intensiva, de trabalho com coreógrafos, professores e colegas do mundo inteiro. Nós tentávamos absorver o máximo, estávamos ali a sugar aquilo que conseguíamos. Foi uma experiência brutal.” No final, Miguel ficou em 3. º lugar na classificação geral e em 1. º lugar na contemporânea. “É muito emocionan- te eé o reconhecimento de alguém que não nos conhece, é um júri imparcial, e isso é muito bom.”
“Há uma sobrecarga para eles, mas ao mesmo tempo é muito estimulante”, admite a professora Liliana. “Por um lado, serve para eles se situarem, porque às vezes não têm muito consciência do seu valor e é bom confrontarem- se com outros, porem- se à prova, saírem deste lugar seguro que é a escola. E para eles também é uma montra. Têm oportunidade de contactar com coreógrafos e diretores de companhia e fazerem contactos.”
Para os alunos finalistas estes contactos são fundamentais. Foi em Lausana que o diretor do Hamburg Ballet reparou em Teresa Dias e a convidou a fazer audições para a companhia. “Eu fui e acabei por ser aceite”, conta Teresa, de 18 anos, voz sumida, uma timidez feroz perante o gravador à sua frente. No entanto, quando começa a dançar, o corpo alonga- se, os movimentos revelam uma beleza escondida e Teresa impõe- se como a bailarina de topo que é. Começou a dançar muito pequenina, aos 4 anos, “porque todas a raparigas vão para o ballet”. Depois, por intermédio de amigas, ficou a saber da existência da EDCN e pediu à mãe para ir fazer as audições. Tinha 10 anos e entrou para o 1. º ano. “Sinceramente, acho que não sabia muito bem ao que vinha”, reconhece. Não previu as horas e horas passadas no estúdio, a repetir gestos, uma e outra vez, até saírem perfeitos. Mas também não previu o enorme prazer de dançar e de conseguir fazer cada vez melhor. O prazer do palco e dos aplausos. “Sim, é difícil conciliar tudo, mas nós habituamo- nos, e se é isto que queremos, temos mesmo que aprender a conciliar tudo”, diz, como se fosse óbvio. “Os últimos anos foram muito especiais, porque é quando percebemos que é isto que queremos e temos as melhores experiências. Agora já tenho a certeza de que é isto que quero fazer.”
Em setembro, Teresa vai para a Alemanha. Apesar da calma aparente, confessa que está um bocadinho nervosa: “Espero gostar. O sonho é dançar muito tempo. Quero chegar alto, obviamente, mas quero dançar por muito tempo.” Miguel também está otimista: “Gosto do palco, apesar do nervosismo. Não me sinto ainda completamente à vontade no palco. Mas é uma adrenalina boa.”