Diário de Notícias

Sair todos os dias da prisão para ir trabalhar

De 2013 para 2014 houve mais 394 postos de trabalho para reclusos, uma subida de 4%. O DN foi conhecer o modelo de Torres Novas, que inclui um recluso que está a escrever um livro sobre as suas aventuras enquanto fugitivo

- RUTE COELHO

Cinco mil presos em regime aberto trabalham em empresas e câmaras. A cadeia de Torres Novas é um caso exemplar.

Todos os dias úteis a cadeia de Torres Novas envia reclusos que estão em regime aberto ( os que estão quase a meio ou no fim da pena) para trabalhare­m nas autarquias de Vila Nova da Barquinha e Almeirim, nas obras públicas e na limpeza das matas. O modelo da cadeia torrejana, muito virada para a reinserção social, “podia ser mais replicado no país”, defende a diretora da prisão, Paula Quadros. Neste sistema, os municípios empregam presos nas obras municipais pagando- lhes 22 euros por dia, algo que muitas empresas também fazem. São contratos de um ano, renováveis. Por mês, os presos recebem 660 euros.

Segundo um relatório dos serviços prisionais a que o DN teve acesso, 38% da população reclusa em Portugal está a trabalhar, quer em empresas quer em autarquias. Ou seja, 5047 presos num universo de 13 378 ( à data de 31 de dezembro de 2014). Assistiu- se, no ano passado, a uma subida de 394 postos de trabalho para presos dos regimes abertos, mais 4% do que em 2013.

Trabalha, tira a carta e escreve Há prisioneir­os que se motivam e motivam os outros, agarrando o presente a pensar no futuro. Um deles está na cadeia de Torres Novas e é nomeado pela diretora do estabeleci­mento, Paula Quadros, como um exemplo. Trata- se de Nuno Gonçalves, 31 anos, que cumpre pena por ter conduzido sem carta desde adolescent­e, acumulando dezenas e dezenas de multas. Nuno, que conserva um ar travesso de criança, foi condenado a sete anos de prisão, pena pesada para a qual contribuiu ter andado mais de quatro anos fugido à justiça e a viver numa aldeia da Guarda com identidade falsa ( era o Miguel).

O antigo mecânico, crescido numa família desestrutu­rada e com muitos irmãos, já cumpriu quatro anos de reclusão. Agora está em regime aberto no interior ( pode sair para trabalhar mas com vigilância), empregado nas obras municipais em Vila Nova da Barquinha e a tirar a carta de condução em Torres Novas. São oportunida­des que a cadeia lhe deu, por intermédio de protocolos firmados com a autarquia e uma escola de condução. “Ainda só estou nas aulas de código”, conta Nuno. “As de condução não me dizem nada porque já corri Portugal todo a conduzir”, diz, com alguma gabarolice. Está também a terminar o 12. º ano. No momento em que o DN falou com ele, estava a alcatroar uma rotunda em Vila Nova da Barquinha, juntamente com outros dois colegas. “Estou também a escrever um livro sobre a minha vida, com 38 páginas, chamado ‘ Uma Vida Atribulada’”.

Dos vários episódios reais, destaca os quatro anos em que andou foragido à justiça. Esteve escondido em Espanha, foi para França de bicicleta, mil e uma aventuras até encontrar uma família que o acolheu numa aldeia na Guarda. “As pessoas mobilaram- me a casa e arranjaram- me emprego. Um homem e uma mulher foram como pais. Na aldeia, tratavam- me por Miguel. Ninguém sabia que andava fugido e que nem podia usar os meus documentos. Quando estava doente, chamava o médico a casa”, recorda Nuno. Um dia, o falso Miguel, com o coração cheio do amor que lhe deram, retribuiu, entregando- se à justiça para cumprir pena. “Não os podia prejudicar”, justifica.

Máximo quer Gestão Hoteleira Alto, louro e musculado, Máximo, de 29 anos, trabalha com afinco a alcatroar a estrada porque tem os horizontes postos no curso superior que escolheu e no qual entrou, Gestão Hoteleira, no Instituto Politécnic­o de Tomar, ao abrigo do programa de candidatur­a para maiores de 23 anos. “Trabalho há um ano e três meses para a autarquia de Vila Nova da Barquinha. Em outubro começo no ensino superior e nessa altura devo mudar do regime aberto no interior para o RAE [ no exterior].”

Máximo está quase a ser ouvido por um juiz – o que acontece quando cumprir metade da pena –, que lhe poderá dar direito à liberdade condiciona­l. “Fui condenado a cinco anos e cinco meses, por recetação de materiais de som e eletrodomé­sticos roubados”. No futuro imagina- se a “interagir com o público na hotelaria”, a área com que sempre sonhou. Já Manuel, 47 anos, condenado a três anos e nove meses por violência doméstica, está quase no cumpriment­o dos dois terços da pena e vê o trabalho como “uma coisa boa”.

Poucos presos no regime aberto O subdiretor- geral da Direção- Geral de Reinserção e Serviços Prisionais ( DGRSP) adiantou ao DN que a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, já tem no seu gabinete mais 30 protocolos ( neste momento são 95 entre empresas e câmaras) com várias firmas e autarquias prontas a empregar mais presos, incluindo a Câmara Municipal de Sintra. Para Licínio Lima, “o ideal é ter todos os reclusos a trabalhar, no interior ou no exterior da cadeia. O objetivo é que ninguém esteja no ócio”. O subdiretor- geral da DGRSP conta que a bolsa laboral que os presos recebem, 22 euros por dia ( 660 euros por mês), já é suficiente para as despesas básicas, “o que evita que peçam dinheiro emprestado a colegas de prisão”. Segundo o responsáve­l, “alguns dos suicídios de reclusos nas prisões devem- se à pressão de não conseguire­m pagar as dívidas a outros”.

Licínio Lima considera que “são muito poucos os presos no regime aberto no exterior: 47 para uma população prisional de 14 mil reclusos”. E defende, como desafio, que se tente incutir, no interior das cadeias e dos serviços centrais da DGRSP, “uma perspetiva de reabilitaç­ão e reinserção dos presos”.

A ideia geral do RAE é o condenado cumprir a pena trabalhand­o no exterior durante o dia e regressand­o à cela à noite. Só pode ser concedido quando um preso já cumpriu um quarto da pena e gozou previament­e de uma saída precária.

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Nuno, 31 anos, condenado por conduzir sem carta, trabalha nas obras e está a escrever um livro sobre a sua vida

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