Diário de Notícias

Marwan, o graffiter, transformo­u Lisboa numa galeria a céu aberto

Marwan veio pintar a parede em frente a um parque infantil de Arroios: a última aquisição da Galeria de Arte Urbana ( GAU)

- MARI A NA PE R E I R A

Filho de iraquianos que saíram do país no início da década de 80, em que nasceu, Marwan nunca visitou o Iraque. “Gostava de ir lá, mas ainda é demasiado perigoso”, diz o rapaz nascido e criado em Londres. Ali estudou Economia, teve um emprego “normal das 09.00 às 17.00”, usou “um fato e tudo”. À noite, contudo, pintava. Encontramo- lo no mercado do Forno do Tijolo, em Arroios, empoleirad­o num andaime para pintar uma parede. Trabalhava na rapariga que sopra pequenas nuvens cor- derosa como se fossem bolinhas de sabão, que agora figura na empena da sala de leitura Clodomiro Alvarenga e que se vê inteira do parque infantil. Terminou na última sexta- feira o trabalho que levou quase uma semana a ser feito.

Mundo fora, é possível que Marwan seja mais conhecido por Myneandyou­rs ou, até, pelo “tipo das nuvens”. Em murais, pequenas pinturas, autocolant­es colados nas paredes de cidades várias, ou distribuíd­as de mão em mão pelos seus habitantes, o artista tem espalhado nuvens por onde passa. Nas costas dos autocolant­es lê- se “Myneandyou­rs”.

“Quero construir pontes entre as pessoas, tentar mudar o modo como olhamos à nossa volta. A ideia em torno da nuvem é como podemos criar um símbolo para fazer as pessoas pensarem. Porque [ ela] não te está a pedir nada, está só ali. Algo que está só ali é um pouco confuso para as pessoas. O que quer? Para perceberem têm de procurar. E o que fazes? Escreves ‘ o tipo da nuvem’ no Google? É só uma nuvem. As pessoas cons- troem uma relação com ela e começam a pôr as suas próprias questões. O que é que significa? Por que está ali? É o que quero que as pessoas perguntem em relação a tudo.”

Se olharmos para a pintura, lá estão elas, feitas bolas de sabão que sobem parede acima. Enquanto ele explica a obra com a qual quis que “os miúdos se ligassem”, a pintura vai sendo retocada por Adamo, um trabalhado­r da Junta de Freguesia de Arroios. Sucedeu a Rui, ajudante de Marwan no começo da obra. Não falam a língua do outro. Todavia, fizeram “muita linguagem gestual” e trabalhara­m juntos das 09.00 às 17.30, hora em que Adamo voltava para casa e Marwan ficava “até o sol ir embora”. “Exercício de cidadania artística” Foi uma ideia da presidente da Junta de Freguesia de Arroios, Margarida Martins, a de dar vida àquela empena, que levou ao contacto com a Galeria de Arte Urbana ( GAU) e, justamente, à chegada de Marwan. Pois já em janeiro, recorda ao DN Inês Machado, técnica da GAU, o artista havia contactado este organismo da Câmara Municipal de Lisboa, exprimindo a intenção de pintar na cidade – entenda- se, uma empena ou fachada sua. Contactos feitos, Marwan estava em Sintra no sábado, dia 25, para um casamento e, no domingo, lançava mãos à obra em Arroios.

Sabendo- o ou não, Marwan juntava- se assim à maior galeria de arte com que Lisboa conta: ela própria, com seus muros e paredes, ruas, avenidas e vielas fora. Uma grande parte da curadoria dessa galeria – é justo dizê- lo – é da GAU, que nasceu em 2008 aquando do projeto de reabilitaç­ão do Bairro Alto que desembocar­ia nos painéis que, desde então, passaram a habitar a Calçada da Glória. Depois viria o projeto Crono em 2010, que fez das fachadas de prédios abandonado­s na Avenida Fontes Pereira de Melo cenário do imaginário dos artistas brasileiro­s Gémeos, o italiano Blue ou o catalão Sam3.

Viria ainda o projeto Reciclar o Olhar, no ano seguinte. A ideia, recorda Inês Machado, era fazer da arte urbana a montanha que vai ao Maomé. Ou seja, pôr em andamento a arte urbana até chegar “a um público mais genérico”. A solução? Pintar os camiões do lixo que circulam pela cidade inteira. “Desafiámos os colegas da Higie-

ne Urbana ( HU).” Assim foi, até que o responsáve­l da HU, por sua vez, sugeriu: “Já agora podiam pintar os 415 vidrões que existem pela cidade inteira.”

Se já os viu, esses vidrões feitos Homer Simpson, Mínimos, catos ou tudo quanto, até aqui, a imaginação dos lisboetas criou, então conhece já uma grande ala da Galeria de Arte Urbana que é Lisboa. Qualquer um pode assinar uma destas obras. “Já tivemos uma pessoa que queria dedicar o vidrão ao pai, outra que queria o que estava à frente da casa da namorada, uma tuna com o vidrão à frente da faculdade, um infantário em que os meninos marcaram as mãos”, conta Inês, que lhe chama um “exercício de cidadania artística”. Hoje, Reciclar o Olhar conta já nove edições, a última das quais feita em parceria com o grupo editorial Leya.

Acresce ainda outra vertente ao projeto de arte pública da capital e que constitui a prioridade deste e do próximo ano: a componente social. No final de julho, o artista Smile esteve no bairro do Alvito Velho, em Alcântara, juntando- se ao projeto Alkajuda, com o intuito de juntar os mais novos e os mais velhos numa obra comum, criando neles um “sentimento de pertença” e um “cuidado pelo espaço público”. A comunidade juntou as suas às mãos do artista e ajudou- o na pintura do mural. “Há quem pinte, há quem vá buscar água ou comida.” A técnica da GAU recorda ainda ao DN projetos que decorreram no bairro do Armador ou do Condado, em Chelas, e que juntaram as diferentes etnias ali residentes, a cigana, africana, hindu ou caucasiana. No final dos trabalhos do bairro do Armador, em 2010, “a comunidade hindu fez um almoço para toda a gente”, diz Inês recordando um evento até aí inédito. Outras alas do museu que é Lisboa são assinadas pelo projeto Underdogs – a quem a GAU cede paredes – do ar- tista Vhils ( Alexandre Farto) e Pauline Foessel. “Trazem grandes nomes internacio­nais da arte urbana que tornam Lisboa num destino turístico”, nota Inês.

Voltamos ao mercado do Forno do Tijolo, em Arroios. Esta é a maior parede ( 10x26m) que Marwan, o artista de ascendênci­a iraquiana, alguma vez pintou. Outrora, à exceção de paredes comissaria­das e cedidas pelo município como é esta, pintava – ilegalment­e – durante a noite. “Ultimament­e fiquei mais confortáve­l com isso e comecei a fazer as coisas ilegais durante o dia. Há um jogo: se usares um casaco amarelo e pareceres oficial, ninguém te questionar­á. Quantas vezes viste alguém pintar paredes usando a roupa certa?”

Conta que esteve recentemen­te em Madrid e em Nova Iorque. Nesta última cidade – onde usou “casaco amarelo” – “tudo era feito durante o dia e as pessoas foram muito reativas. Perguntava­m, comentavam. Estavam entusiasma­das por estar a fazer alguma coisa na sua vizinhança”. Quando trabalha ilegalment­e não usa spray, até porque diz querer que o seu trabalho “pareça ter sido f eito por um computador”. “Pinto tudo em enormes folhas de papel e depois colo. Porque se l evar uma l ata de spray e me apressar vai ser uma balbúrdia, não vai ficar bem.” Quem assistiu ao seu trabalho em Lisboa, via- o de régua a medir a distância entre as bolas azuis, depois papel aqui, spray acolá, tudo sob o forte sol do verão português.

“Obrigado, Lisboa. Vou para casa hibernar”, lia- se sexta- feira na página de Facebook do artista. A obra estava terminada. Agora resta esperar pelo fim das obras na piscina dos Anjos para o parque infantil reabrir as suas portas e, então, saber o que dizem os miúdos das nuvens cor- de- rosa que, a grande escala, uma rapariga fixada numa parede sopra mesmo à sua frente.

A parede em Arroios é a maior obra que Marwan

já pintou

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Marwan em frente à obra que terminou na última sexta- feira no mercado do Forno do Tijolo
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