O papel encaracola. Carta de um leitor
Diz o bom senso que não se morde a mão que nos alimenta. Mas também há aquela história do escorpião que atravessa o l ago às cavalitas da rã e a mata, afogando- se de seguida, apenas por ser da sua natureza.
Eu nasci com pouquíssimos filtros, é a minha natureza, e os poucos que fui adquirindo com o tempo são, ainda assim, manifestamente insuficientes. Na luta entre o bom senso e a minha natureza, como ficará evidente nest a carta, quase sempre ganha a última.
Neste fim de semana comecei a escrever no DN, o j or nal propriamente dito, aquele que f ez 150 anos e que é o mais antigo de todos. Também é bem capaz de vir a ser o melhor de todos; seguramente está no bom caminho. Está ( em relação a um passado recente) mais rigoroso, mais factual, com melhor desenho e mais equilibrado no que à opinião diz respeito. Parece estar menos paroquial e ter mais mundo. Pena é o papel.
Todos consumimos notícia e opinião pela rede e de borla ( ou tendencialmente de borla), mas, para muitos, um jornal em papel é um delicioso hábito que, com o tempo, tem vindo a tornar- se um luxo. Um luxo porque se paga, e um l uxo porque requer que se suspenda o tempo para o folhear, para passar os olhos, para o ler e para descobrir assuntos interessantes que i nteressam pouco à turba que quase só partilha política e opinião nas redes. Um jornal em papel não é só i nformação, é um objeto que t em l ugar no espaço e no tempo. O seu manuseamento e leitura não é meramente f uncional – como é, quase sempre, o consumo de informação na rede. Ler um jornal em papel é todo um cerimonial, um gozo. Quem não tem esse hábito não sabe o que perde. Mas as coisas são como são. Quem não se habituou a comprar o jornal já nunca o comprará, e a experiência noticiosa passará sempre pela rede; é, portanto, para lá que devem ser dirigidos os esforços e o engenho dos editores e gestores dos media.
No entanto, e até que se operacionalize outro modelo de negócio, quem paga tudo é o papel; ou melhor, os leitores que o compram e os poucos anunciantes que ainda se servem do meio físico para anunciar as suas marcas e produtos. E é por essa razão que eu estou a reclamar, não como cronista, mas como leitor e comprador. Quero melhor papel, quero um papel que faça jus ao luxo que é despender tempo recostado na cadeira a depenicar o pequeno almoço e a ler o que a redação resolveu servir- me pela manhã.
Há tempos, estava eu, um amigo jornalista e um português dos muito importantes a tomar café num restaurante chique de Lisboa, quando a conversa, inevitavelmente, foi parar à imprensa e aos j ornais. O português muito importante comentou que, apesar de o DN estar muito melhor, ele, que tem todos os jornais do dia logo pela manhã na secretária, não o lia com frequência porque encaracolava. – Encaracola? – perguntei. – Sim, encaracola, ao contrário do Público, por exemplo, que não encaracola.
Não sendo bem da casa, ainda assim tentei desculpar o j ornal com a humidade de Lisboa que anda, quase sempre, acima dos 80%. Mas ele disse que não. Que mesmo nestes dias de canícula, quando a humidade relativa é baixa, o DN encaracola.
–É o papel – disse ele — É de má qualidade.
O amigo j ornalista também c oncordou: o DN e ncaracol a . O objeto é mole, pífio, não se põe de pé; mesmo quando o seu jornalismo é duro, os assuntos vigorosos e a opinião tesa.
Lamentavelmente, tive de concordar. É verdade! Este papel, onde me l ê agora, não é da melhor qualidade.
– Nem o Correio da Manhã encaracola tanto – escarafunchou ainda mais na ferida o português muito importante; um daqueles ( poucos) que ainda têm um generoso orçamento publicitário e que, como eu, continuam a folhear jornais.
É pois em nome dele, e de todos os que ainda se comprazem com este pequeno luxo, que reclamo uma coisa mais firme e hirta, mais como os textos que aqui se leem e que vão diretos ao assunto sem dar voltas suspeitas, sem encaracolar. Queremos um DN que não encaracole. Sff.