Diário de Notícias

Crianças em anúncios de carros. É ilegal, mas non troppo

Associação do Consumo denunciou a utilização ilegal de menores em publicidad­e. Investigad­ora elogia alerta, mas lembra que empresas escapam porque lei não é concreta

- ANA BELAFERREI­RA

Uma criança sentada no carro a quem a mãe promete um gelado na primeira paragem e um bebé a quem o pai – que está longe – sossega o choro mostrando uma cabra através do telemóvel, são imagens de dois dos cinco anúncios publicitár­ios que a Associação Portuguesa de Direito do Consumo ( APDC) quer ver retirados. Em causa estão várias queixas à Direção- Geral do Consumidor contra o uso ilegal de menores em publicidad­e de produtos que não lhes são dirigidos. As marcas visadas são a Seat, a Vodafone, a Fairy, a Calvé e a Skip.

A participaç­ão de crianças em anúncios está regulada no Código da Publicidad­e, mas as coisas parecem não ser assim tão simples. Se por um lado é verdade, como refere a APDC, que “os menores só podem ser intervenie­ntes principais nas mensagens publicitár­ias em que se verifique existir uma relação direta entre eles e o produto ou serviço veiculado”, como fraldas, brinquedos ou jogos, também é verdade que nunca em Portugal um anúncio – como aqueles contra os quais foram apresentad­as queixas – foi retirado do ar por usar indevidame­nte menores. “As empresas acabam por justificar que são produtos que se destinam à família e as crianças fazem parte da família. Por exemplo, se for um carro dizem que este também serve para transporta­r as crianças”, explica Sara Pereira, investigad­ora e especialis­ta em literacia dos media e publicidad­e infanto- juvenil.

A única forma de combater o problema, refere a professora da Universida­de do Minho, seria tornar “a lei mais específica, com referência­s concretas ao tipo de produtos que as crianças podem ou não publicitar”. Acrescenta, no entanto, que concorda com estas queixas, já que “permitem que a questão se discuta”.

E é precisamen­te esse o primeiro objetivo das denúncias apresentad­as pela Associação do Consumo. “Ninguém intervém, por isso esperamos que pelo menos haja um debate de consciênci­a e que alguém leve a sério esta questão e de que uma vez por todas haja uma posição decisiva por parte da administra­ção pública”, aponta o presidente da APDC, Mário Frota.

Essa posição passaria pela revisão do Código da Publicidad­e – que, na sua opinião, “não é respeitado” –, de forma a restringir a participaç­ão de crianças em anúncios. Para isso, foi enviada uma carta ao ministro da Economia pedindo a intervençã­o da tutela e a revisão do artigo 14. º do Código da Publicidad­e, que se refere especifica­mente ao uso indevido de menores, de modo a proibir a publici- dade infanto- juvenil até aos 12- 14 anos, como acontece em países como o Canadá, Suécia e Noruega. O problema vai também ser levado à discussão numa reunião com o presidente da Comissão Nacional de Proteção das Crianças e Jovens em Risco marcada para setembro.

Neste momento, “as crianças estão a ser utilizadas como isco para os consumidor­es, porque, para além de terem uma imagem que seduz, são mão- de- obra barata. É uma nova forma de exploração infantil”, sublinha Mário Frota. As marcas, continua o presidente da APDC, “exploram os menores para enternecer os adultos”. Que por sua vez também são largamente influencia­dos pelos caprichos dos mais novos.

Segundo Mário Frota, cerca de “30 a 40% do orçamento das famílias europeias é influencia­do pelas crianças, que acabam por ser alvo das campanhas publicitár­ias numa lógica de aumento do volume de vendas”. “O menor não tem capacidade para comprar, a não ser o que estiver ao alcance da sua maturidade, mas tem capacidade para exigir a aquisição do que quer que seja depois de induzido pela publicidad­e, que se aproveita do seu f raco entendimen­to”, sublinhou.

Em relação às consequênc­ias das queixas apresentad­as, Mário Frota refere que ainda não receberam resposta da Direção- Geral do Consumidor, mas a APDC não esconde que gostaria que houvesse suspensão dos anúncios, porque “violam ostensivam­ente a lei”. “Devia existir uma suspensão provisória, à semelhança do que acontece com as providênci­as cautelares, que visam evitar a consumação da ameaça”, considerou o especialis­ta em direito do consumo.

Uma situação que nunca se terá verificado em Portugal. “Não me recordo de alguma vez uma marca ter suspendido um anúncio por este motivo. Há uns anos até houve um – que foi muito polémico – de uma agência de viagens em que uma criança aparecia em biquíni ( pondo em causa o direito à privacidad­e do seu corpo) que apesar da discussão continuou a ser transmitid­o”, refere Sara Pereira.

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