Diário de Notícias

FOLHETIM “GOVERNAR VAI SER ESTAR NO SÍTIO ERRADO...”

FICÇÃO POLÍTICA. 6 de setembro, domingo, Paulo Portas entra na sede do PS por uma porta esconsa do jardim. Espera- o António Costa e vão os dois para o gabinete do líder socialista. Portas faz uma proposta surpreende­nte: vão ter ambos de perder as eleiçõe

- Por Anónimo

NNo jardim interior do Palácio Marquês da Praia, António Costa aguardava. Às exatas três da tarde, ouviu- se um rodar de chave, a pequena porta do muro que dá para a Capela do Rato abriu e um chapéu panamá espreitou. Depois de cumpriment­ar Costa, Paulo Portas deitou um olhar para a Mãe- d’Água das Amoreiras que dominava o jardim. Do terraço ver- se- ia aquele encontro improvável? Numa tarde de domingo, a 6 de setembro, nas vésperas de abrir a campanha eleitoral, que fariam ali os líderes de dois partidos adversário­s? O dono da casa tranquiliz­ou- o: “As árvores escondem- nos.” Portas olhou para a maior delas: “É um belo Platanus hispanica”, disse. Baixou- se e apanhou um fruto com pelos amarelados: “Agora que o fim do verão está a chegar, os tentilhões adoram comer estes aquénios...” Os dois viraram as costas à Mãe- d’Água e caminharam em silêncio para a sede do PS. Portas pensava que teria de contar ao seu amigo Bagão Félix o efeito produzido pelos seus conhecimen­tos sobre árvores.

O jardim acabava em árvores de fruto mas já não havia ameixas. Antes da escadaria dupla que descia para o jardim inferior, Costa mostrou o longo edifício do outro lado da rua: “Sabe que ali, no Convento das Trinas, foi a primeira sede do PSD?” Portas, que aos 13 anos andava pela JSD, sabia, mas o que lhe interessou foi outra coisa: “Ele continua a tratar- me por você”, pensou. Já se haviam tratado por tu mas, desde 2002, Costa passou a manter distância. A então ministra da Justiça, Celeste Cardona, do CDS, tratou mal o antecessor dela. E ele era o antecessor. Apesar do ar plácido, o socialista não era homem para esquecer.

Do jardim passaram para uma sala do primeiro andar do palácio, cuja portada tinha ficado entreabert­a. O visitante percebeu que era o gabinete de Costa. Um Santo António segurava o halo como quem tira o chapéu – o dono da sala gostava de lembrar já ter sido o patrão de Lisboa.

Antes de se sentar num dos dois sofás, Portas cirandou pelo gabinete. Uma foto de Mário Soares a regressar do exílio, em Santa Apolónia, 1974, com Maria Barroso: “Este é o Tito de Morais, não é?”, disse para mostrar que conhecia a história do PS. Portas tinha o panamá na mão, abanava- o. No Caldas, o ar condiciona­do do seu gabinete estava sempre em modo polar. Parou nos dois quadros que defrontava­m a secretária. Eram do pintor Pedro Proença, com frases malucas a fazer de moldura. Torcendo o pescoço, leu no primeiro: “Certa manhã... Ruminava umas teorias tangosas e... Júlia? Fernanda? Milu?” Passou para o quadro da direita: “Não exageres nas exegeses! Que chato! Coragem camaradas palhaços... um gabarolas do pior...” Depois disto, Portas sentiu- se à vontade para dizer ao que vinha. Sentou- se e disparou.

– Caro António, temos de perder as eleições. Eu, t... você, o Passos, todos.

Costa guardava a cara de póquer com que ouvia os seus companheir­os da Quadratura do Círculo. Olhava direito para o interlocut­or, com um sorriso gentil e atento. Portas reparara que ele estava muito mais escuro do que o costume – teria ido à praia? António Costa ia entrar numa campanha eleitoral e tinha ido à praia! Se calhar aquele casacão aos grandes quadrados com que se expôs à esperada matilha de jornalista­s – fora visitar Sócrates à prisão – revelava uma atitude genuína como quando recusava atrasar um discurso para ele aparecer na abertura do telejornal. “Vai- se a ver, ele não precisa que lhe peçam para perder eleições, perde- as naturalmen­te”, suspirou Portas.

Mas já o outro o interrogav­a: “Todos? Todos a perderem as eleições é uma impossibil­idade, não?” Não era todos, era a coligação e era o PS, e nem era bem isso, seriam os líderes, e, no fundo, era ele, Paulo, e ele, António... – explicou Portas. “Faço 53 anos para a semana, você tem 54 e o Pedro Passos Coelho tem 51. Podemos desperdiça­r um mandato e retomar as nossas ambições daqui a quatro, cinco anos”, disse. Hesitou um pouco, e acrescento­u: “Enfim, talvez não o Pedro, esse já chegou onde nunca sonhou.” Agora, o socialista estava mesmo intrigado.

– Mas por que raio tenho, eu, de perder as eleições de 4 de outubro?!

Com a atenção de Costa fisgada, Paulo Portas deu mais corda: “Sabe quem foi Bonar Law?” E nem esperou pelo abanar de cabeça. “É conhecido em Inglaterra como o Primeiro- Ministro Desconheci­do, como o Soldado. E trago- o para a conversa porque as cinzas de Neville Chamberlai­n foram depositada­s ao lado das dele...” Aí, fez- se uma luzinha nos olhos de Costa, começava a perceber a ideia do outro. Chamberlai­n foi o líder britânico que assinou o Pacto de Munique em 1938 com Hitler e regressou a Londres com “a paz para o resto das nossas vidas”. Churchill avisou: “À Inglaterra foi dado a escolher entre a desonra ou a guerra. Escolheu a desonra, terá a guerra.” No ano seguinte Chamberlai­n ainda governou durante os primeiros meses da guerra mas, felizmente, Winston Churchill substituiu- o. Chamberlai­n morreu semanas depois, símbolo da derrota histórica.

“António, a Europa está por um fio. A Grécia vai saltar e nós vamos a seguir. E se não for por finanças, implode por falta de política: olha, os imigrantes nas fronteiras, o Estado Islâmico, a Rússia...”, a geopolític­a até o fez esquecer que já não se tratavam por tu. A mensagem de Paulo Portas começava a ser clara: governar Portugal nos próximos meses ou anos era estar no sítio errado no momento errado. Apanhar Portugal no apeadeiro seguinte, fosse ele quando fosse, podia ser a redenção... Costa não entendia ainda é porque ele o prevenia. “Porque ou combinamos juntos o que fazer ou não controlamo­s o resultado eleitoral e arriscamo- nos a ganhar.” E para que um pormenor infeliz não estragasse o momento, Portas inclinou- se no sofá e voltou a tratá- lo por você: “Ouça...”

Continua amanhã...

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