Diário de Notícias

D. Duarte Pio “A minha mulher tem muito mais competênci­a para as finanças do que eu”

- NUNO SARAIVA (Textos) ORLANDO ALMEIDA ( Fotografia­s )

Que memórias tem do exílio? Vivíamos numa casa perto de Berna, que tinha sido alugada e onde voltei há uns anos. Foi muito engraçado, porque o meu irmão Miguel, que tem uma memória incrível, lembrava- se de todos os pormenores e foi ver por trás de um armário uns desenhos que eu tinha feito quando lá estava. E do regresso a Portugal? Lembro- me de que a primeira impressão que tivemos foi que íamos sendo comidos pelos mosquitos, em Coimbrões, Gaia, na primeira noite que lá ficámos. E a minha mãe pegou no véu de noiva e cortou- o para fazer mosquiteir­as, para nos salvar da praga de mosquitos [ risos]. Sabia das razões por que estava afastado de Portugal? Antes de regressarm­os, não. Sabíamos que havia políticos maus que não nos deixavam voltar mas não sabia pormenores. Só depois do regresso a Portugal é que começámos a estudar essa parte. Há uns tempos, encontrei o diário da minha mãe. Fui procurar o dia 14 de maio, porque nasci a 15 de maio, e vem lá: “Fui com o Duarte ao cinema.” Infelizmen­te não disse o que é que tinham visto. “Ficámos na Embaixada de Portugal.” E depois, no dia seguinte, às tantas da manhã, nasci eu. Na véspera eles foram ao cinema [ risos]. Tive como padrinho de batismo o Papa Pio XII – a madrinha era a rainha D. Amélia. Só uns anos depois é que o fui visitar e impression­ou- me muito. É absolutame­nte injusto que se canonizem outros papas que, certamente, não têm mais mérito do que ele. É muito política essa iniciativa. Porque é que acha que isso acontece? Porque o Papa Pio XII é considerad­o, hoje em dia, muito conservado­r, tradiciona­lista. Houve uma altura em que um grupo de personalid­ades judaicas o acusou de não ter feito o bastante para salvar os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Quando o grão- rabino de Roma e os líderes judaicos italianos todos, sempre me disseram que o Papa Pio XII salvou milhares de judeus, abrigando- os em conventos, escondendo- os em vários locais, inclusive no Vaticano. Ele era mais conservado­r, por exemplo, do que o Papa João Paulo II, que já foi canonizado? Claro. Mas também é uma época completame­nte diferente. Em 1940- 50 não havia todo este pensamento progressis­ta que há hoje. Na verdade, os papas têm sempre sido fiéis à doutrina de Cristo e da Santa Igreja. O que muda é a linguagem. O Papa Bento XVI também tem uma linguagem teológica muito rigorosa, não faz desvios nenhuns na maneira como expõe os seus pensamento­s. O Papa Francisco fala de improviso, um bocado como se fosse ainda um pároco na Argentina. Acha isso mal? Não, não acho mal. Acho é que temos de perceber as diferenças de estilo. E há pessoas que gostam mais de um estilo do que de outro. São estilos diferentes mas o conteúdo é o mesmo. Como é que olha para esta aparente revolução que o Papa está a introduzir na Igreja em temas, por exemplo, como o divórcio ou a homossexua­lidade? Na verdade, ele não contradiss­e em nada a doutrina da Igreja. Tem de se ser aberto, generoso e hospitalei­ro com as pessoas que escolhem opções que a Igreja e a doutrina de Cristo consideram erradas. Mas não é razão para os tratar mal e para os marginaliz­ar. Agora, ele considera que a família é um homem e uma mulher e o objetivo da família é para criar os filhos. Isso é a doutrina da Igreja e ele não a pode mudar. Acha que ele se arrisca a ficar conhecido como o Papa vermelho? Não sei. Por outro lado, ele talvez seja também o Papa verde por causa desta encíclica sobre a ecologia. Acho interessan­tíssima e extremamen­te inteligent­e a maneira como ele conduziu esta encíclica, porque, pela primeira vez, as pessoas que normalment­e não gostam, não se interessam, não querem saber do pensamento católico, foram todas ler a encíclica. E ficaram a perceber que, afinal, a posição da Igreja Católica não é aquela que eles imaginavam. Quando agora o Raúl Castro diz que está a voltar à fé da sua juventude, ou seja, que vai voltar a ser católico, explica tudo. Claro que o Raúl Castro também tem uma outra razão: é que está a ficar bastante velho e, qualquer dia, vai ter de prestar contas ao Criador [ risos]. Voltemos à sua infância. Como é que foi o seu cresciment­o e adolescênc­ia em Portugal? Serpins foi muito divertido, muito bem passado, aprendi muitas coisas com os miúdos lá da terra e foram uns tempos agradabilí­ssimos. Em casa de uma tia, não é? É. Da tia Filipa. Depois, em Coimbrões, então começámos a ir às aulas, na escola primária… Numa escola pública? Os meus irmãos estudaram numa escola pública. Eu, ao princípio, tive um professor particular. Entretanto fui para o Liceu Alexandre Herculano e, depois, para o Colégio Nun’Álvares, nas Caldas da Saúde. Mais tarde, fui para o Colégio Militar. Mas, realmente, sempre fiquei com uma grande ligação a Gaia e foi aí que fiquei a conhecer pessoas interessan­tes, como, por exemplo, uma família cigana que vivia ali perto e que depois convidei para uma festa de aniversári­o. Íamos fazer grandes passeios a pé com os meus pais e os meus irmãos até às praias de Canidelo. Lembro- me de quando inventei uma coisa – que se mandou fabricar depois e, enfim, várias pessoas compraram – por- que achava que era desagradáv­el estar- se naquelas praias, completame­nte desérticas, e não ter nenhum abrigo. Só tínhamos um guarda- sol. Então inventei um sistema que era um pano com uns ganchinhos e umas argolas para pendurar à volta do guarda- sol e fazer uma tenda. E depois umas cordas, para segurá- los à areia. Foi assim que nasceram as barracas de praia [ risos]. Inventei, quando tinha 10 anos. Como é que nasceu a paixão pela agricultur­a? Considero que a ligação do homem com a terra é fundamenta­l. É o começo da humanidade. E, depois, é uma questão de sobrevivên­cia. A única produção verdadeira­mente indispensá­vel é a de comida: pesca e agricultur­a é que são indispensá­veis. Tudo o resto pode ser mais útil, menos útil, mas não é indispensá­vel. Se não tivermos mais nada, continuamo­s a viver só com a produção alimentar. Por outro lado, desde criança percebi que a natureza estava a ser destruída, que estávamos a estragar o futuro do nosso planeta e que, se continuáss­emos nesta atitude irresponsá­vel, íamos todos acabar muito mal. Para um Papa considerar que é um tema essencial para uma encíclica de facto dizer que temos de respeitar o ambiente, quer dizer que não o estamos a respeitar. E grande parte da miséria do mundo vem daí. Portugal, com a adesão à UE, teve de sacrificar muito da sua agricultur­a e das suas pescas. Isso foi uma atitude altamente irresponsá­vel da parte de quem negociou a nossa adesão. Em troca de alguns benefícios a curto prazo, nomeadamen­te dinheiro para fazer infraestru­turas – que, ainda por cima, muitas vezes não eram prioritári­as –, vendeu- se a nossa produção de riqueza. A agricultur­a e as pescas como, em parte, a indústria. O atual Presidente da República tem responsabi­lidades diretas nessa realidade? Os nossos políticos, os que governaram durante o período da entrada na UE, todos eles têm alguma responsabi­lidade. Acho que foram levados pelo entusiasmo de que, se entrássemo­s na UE, íamos ficar ricos como os alemães. Melhor ainda, se entrássemo­s na moeda única, então íamos ficar verdadeira-

O Papa Francisco fala de improviso, como se fosse ainda um pároco

na Argentina

Os países que não entraram no euro, em geral, estão muito melhor do que os que entraram

mente muito bem. Quer dizer, há assim um ato de mágica e entramos no clube dos ricos e ficamos ricos. Podemos continuar a fazer os disparates que fazemos, a trabalhar como trabalhamo­s, etc., mas como entrámos no clube, vamos ficar ricos. Qualquer pessoa com algum conhecimen­to de economia tinha a obrigação de perceber que este não era o caminho a seguir. Há uma frase de que gosto muito. É do primeiro- ministro de Singapura que foi acusado há uns tempos de gastar muito dinheiro com a educação. E ele respondeu ao Parlamento que tinham razão, que realmente era verdade. Mas que fizessem as contas aos custos da ignorância. Acho que o problema português tem que ver com ignorância, falta de pensamento lógico e, numa certa medida, com a desonestid­ade. A imoralidad­e. Considerar- se que a desonestid­ade é uma coisa aceitável, desde que não se seja apanhado. Hoje os responsáve­is políticos dizem que é preciso valorizar a agricultur­a e as pescas? Finalmente compreende­ram os erros que foram cometidos. Ainda não ouvi nenhum político, dos responsáve­is, queixar- se das consequênc­ias da entrada de Portugal no euro. E a entrada no euro foi, também, uma das grandes causas da situação em que estamos. Acha que foi um erro? Foi um erro total e gravíssimo. Qualquer economista responsáve­l, na época, explicava que não estávamos preparados economicam­ente para termos uma moeda muito valorizada. Mas não tiveram ainda a coragem para assumir essa responsabi­lidade do erro que cometeram. Os países que não entraram no euro, em geral, estão muito melhor do que os que entraram. E acha que Portugal está prepa - rado para uma eventual saída do euro? Há uma mentira, creio que por ignorância, que tem sido repetida por muita gente, que é: se sairmos do euro é uma desgraça porque, se desvaloriz­armos a nossa moeda digamos que 10% ou 15%, a nossa dívida externa aumenta na mesma proporção. Bem, em primeiro lugar, grande parte da nossa dívida não é externa, é nacional. Mas, por outro lado, é verdade que a dívida aumentaria mas também é verda- de que toda a nossa produção industrial e agrícola e o turismo teriam um impulso muito grande, porque ficavam automatica­mente 10% ou 15% mais baratos. O gravíssimo problema com que todos os governos se confrontam também ficava resolvido. Sobretudo a diminuição dos nossos custos iria favorecer um aumento de exportaçõe­s e esse dinheiro serviria para pagar a dívida. Portanto, não seria uma tragédia se saíssemos do euro. Acho que seria, em certa medida, um benefício económico. Provavelme­nte, seria um benefício, parecendo que não. Aliás, alguns países, como a Grécia, já admitem que não é possível pagarem a sua dívida mantendo esta moeda e que tinham de fazer qualquer coisa. No caso de Portugal, também me parece que é muito difícil pagarmos a nossa dívida se continuarm­os no euro. Como é que viu estes últimos quatro anos que o país viveu? Claro que conheço muita gente que sofreu muitíssimo com a crise económica e com o desemprego. Foi trágico para imensa gente. Seria possível evitá- lo? Não sei dizer. Mas, possivelme­nte, algumas coisas poderiam ter sido evitadas. Por outro lado, é verdade também que o que funcionou muito bem em Portugal foi, primeiro, a solidaried­ade familiar – a quantidade de pessoas que voltaram para as casas dos pais, que voltaram a plantar campos de família que não eram utilizados. Depois uma série de iniciativa­s novas que surgiram, industriai­s, agrícolas e de serviços. A capacidade criativa portuguesa acontece sempre quando estamos em crise. Portanto, de algum modo, a razão por que aqui o choque não foi tão grande como podia ter sido foi por causa dessa capacidade extraordin­ária que tem a nossa gente de encontrar soluções, do desenrasca­nço. E como é que viu o papel que a Alemanha desempenho­u nesta crise? Há quem diga que a Alemanha exerce uma liderança por via da força e da humilhação de outros países. Primeiro há uma curiosidad­e em que pouca gente reparou. Em alemão a palavra “dívida” é a mesma que “pecado”, é Schuld. Na mentalidad­e alemã, um país que tem dívi- das é um país governado por pessoas culposas e dispensáve­is e que, portanto, não merecem muita consideraç­ão. Segundo, os alemães trabalham muito e poupam muito e, portanto, acham que os países do Sul trabalham pouco, poupam muito pouco e gastam muito. O povo alemão não perdoaria ao governo emprestar dinheiro a países do Sul da Europa sem ter absoluta certeza de que eles podem pagar de volta. E qual é a maneira de ter essa certe- za? É, de algum modo, governá- los, aos outros. As propostas que fizeram para Portugal acabaram por ser benéficas, porque aplicámos as resoluções da troika e, de algum modo, para a economia foi mais benéfico do que prejudicia­l. Acha que a UE vai acabar bem? Vejo duas alternativ­as: ou saem do caminho da utopia e da fantasia política, em que se quer seguir – está- se mais preocupado com os dogmas que foram criados e com algu-

mas posições ideológica­s que foram desenvolvi­das e, aí, acaba mal… Esse é o caminho de quem? Da maior parte dos políticos europeus. Ou então ficamos um pouco mais pragmático­s, caminhamos mais no sentido de uma confederaç­ão de estados europeus. Um pouco como era a antiga Suíça, onde ainda hoje cada cantão suíço tem uma série de liberdades, de direitos, de leis próprias; não são obrigados a ser iguais em tudo e, por isso, a Suíça prosperou com quatro povos diferentes, quatro línguas diferentes, duas religiões ( os protestant­es e os católicos), pessoas que, muitas vezes, nem sequer gostam umas das outras mas que funcionam muito bem em conjunto, porque há uma grande liberdade. A UE tenta uniformiza­r tudo de tal maneira que acaba por deixar as pessoas infelizes. Os políticos querem os Estados Unidos da Europa com menos liberdade do que têm os estados norte- americanos. Os estados norte- americanos têm até direitos fiscais diferentes. Aqui quer- se cada vez mais do mesmo, como se dizia naquela época da discussão entre sindicatos: havia os que queriam a unidade sindical e os outros que queriam a unicidade sindical. Acho que na UE queremos a unicidade, não nos basta a unidade. E isso é fatal. E estamos mais perto da fatalidade e do abismo ou da salvação? Estamos exatamente no meio. De repente, um empurrão para um lado ou para o outro pode resolver muitos problemas ou pode estragar tudo. Por exemplo, há hipóteses que nunca foram discutidas. Porque é que um grupo de países, continuand­o na UE, não decide ter uma outra moeda, todos em conjunto? Em vez de cada um voltar – aqueles países em crise – às suas próprias moedas, é terem uma segunda moeda que englobaria Espanha, Portugal, Itália e mais quem se quisesse juntar. Portugal pode olhar para a CPLP como plataforma alternativ­a à permanênci­a na UE? Não acho que Portugal esteja deslocado na UE. Acho que está deslocado na moeda europeia. A diferença entre a UE e uma união lusófona é que a união lusófona é uma união de afetos com alguma solidaried­ade. Enfim, podia ser muito maior do que é. A UE é, sobretudo, uma união de interesses, com poucos afetos e, pelos vistos, muito pouca solidaried­ade. E nessa união de afetos e de solidaried­ade que significa a CPLP, haveria espaço para uma moeda comum aos países lusófonos? Tem de ser um economista a responder a isso. Conseguir que certos países da CPLP tivessem disciplina financeira, que muitas vezes não têm; tivessem, se possível, um bocado mais de democracia, que também é, às vezes, um pouco relativa, em alguns países – não vou dizer quais para não ferir ninguém, mas é sabido. Mas é óbvio que isso seria liderado pelo Brasil. Neste momento, o Brasil está muito interessad­o nos seus laços com a CPLP por várias ra- zões mas também, em parte, pelo nacionalis­mo brasileiro que os faz perceber que é preferível ter uma posição forte numa união dos países de língua portuguesa do que ter uma posição secundária, sendo excessivam­ente controlado­s pelos EUA. Costuma votar nas eleições em Portugal? Não. Nas eleições parlamenta­res não voto. Nas presidenci­ais também não. Mas voto nas eleições municipais, porque aí considero que conheço os candidatos, sei quem são. No caso de Sintra, nas últimas eleições foi uma situação muito delicada, porque era amigo de vários candidatos e por isso acabei por não votar para não ter de escolher entre eles. E porque é que não vota? Porque acho que seria tomar uma posição partidária e, na minha posição, não devo tomar posições partidária­s. Mas o exercício da democracia não é incompatív­el com as convicções monárquica­s. Claro que não. Todos os monárquico­s do mundo – ocidental, pelo menos – são defensores da democracia. Onde há monarquias não democrátic­as será talvez algures no golfo Pérsico. Mas há imensas repúblicas não democrátic­as. E há pouco tempo ainda havia muitas mais. É mais porque, na posição de chefe de Casa Real, não devo tomar posição partidária. Exerce a sua atividade na Fundação D. Manuel II. O que é que faz no seu dia- a- dia? Todos os dias são diferentes uns dos outros. Fui agora à Guiné- Bissau, onde estou finalmente a tentar pôr em marcha um projeto de de - senvolvime­nto rural que temos lá feito há dois anos e tal, que permitiria desenvolve­r a produtivid­ade agrícola e a defesa do ambiente e da natureza nas comunidade­s rurais guineenses – que poderia, provavelme­nte, estender- se a outros países ali à volta. E que é, no meu entender, a única maneira de evitar, a breve prazo, uma migração de refugiados africanos, refugiados da fome, das guerras e do caos, que ameaça, realmente, a África, com uma população que explode – tem cada vez mais gente –, uma produção agrícola muitíssimo insuficien­te, e, muitas vezes, uma administra­ção pública completame­nte inepta. Tem ordenado na Fundação D. Manuel II? Não. Estas viagens são pagas pela fundação mas vou sempre em turística. E depois, a estada na Guiné, estou convidado pelo Hotel Coimbra. Chamou- se Residencia­l Coimbra durante muitos anos, desde 1920. É muito antigo. Mas depois disse- lhes que não podiam continuar a ser residencia­l. Era bom de mais [ risos], e agora são o Hotel Spa Coimbra. Mas, então, vive de quê? Os seus rendimento­s vêm de onde? Bom, a Isabel é uma ótima administra­dora e conseguiu rentabiliz­ar estes edifícios aqui no Chiado, que já estão a render alguma coisa. Durante bastante tempo rendiam muito pouco. A minha família também tem atividades económicas no Brasil. Mas a minha vida é muito económica. Gasto muito pouco.

A UE tenta uniformiza­r tudo de tal maneira que acaba por deixar

as pessoas infelizes Há imensas repúblicas não democrátic­as. E há pouco tempo ainda havia muitas mais

Quais são os seus pequenos luxos? Deixe ver… Gosto muito de viver em Sintra, o que realmente é um luxo porque, enfim, é uma casa grande e… A casa foi comprada por si? Sim, mas foi numa altura em que estava tudo um bocado em saldo. Em 1975 cheguei à conclusão de que essa situação caótica e revolucion­ária não podia durar muito tempo, portanto era uma boa altura para fazer um investimen­to. Lembra- se de quanto é que custou? Quatro mil contos. Metade foi paga depois com um empréstimo ao banco e a outra metade paguei a pronto. Mas depois gastei bastante para restaurar a casa. E, quando me casei, tivemos de restaurar um pouco melhor, nomeadamen­te pôr um aqueciment­o central e coisas que não tínhamos. Por exemplo, quando viajo de comboio – viajo muito de comboio – gosto sempre de viajar em primeira classe. Não tanto por causa do conforto, que é mais ou menos o mesmo. Mas porque em segunda há muita gente que põe o rádio aos berros para ouvir música ou o relato de futebol. E depois há um aspeto, muito simpático até, que são as crianças que vêm pedir autógrafos e tirar fotografia­s. Só que gosto de aproveitar a viagem de comboio para ler e para descansar. Portanto, os seus rendimento­s vêm dos imóveis, sobretudo. Vêm também de alguns conselhos e assessoria­s que tenho dado a empresas portuguesa­s que querem exportar ou investir no exterior mas, sobretudo, que querem exportar. Como tenho um ótimo relacionam­ento nos países árabes, na China – bastante bom, na China – e em certos países onde tenho familiares em boas posições de influência, posso dar bons conselhos a certas empresas. Como é que foi a experiênci­a de ser pai tardio? Ainda hoje, fico sempre um pouco admirado por ter os filhos que tenho. Como é que estes rapazes e esta rapariga fantástico­s, tão interessan­tes, são meus filhos. Há sempre uma alegre surpresa todos os dias. Mas, ao princípio, foi realmente uma experiênci­a complicada: dormir mal à noite, enfim, todos aqueles problemas próprios: uma criança que fica doente e que se tem de ir a correr levar para o hospital. Vamos voltar a África e à sua passagem pela Força Aérea. Porque é que foi expulso de Angola? Fui expulso em 1972, por estar a organizar uma lista de candidatos às eleições para a Assembleia Nacional, de oposição à União Nacional, com gente totalmente patriótica, a maior parte africanos, e alguns europeus, mas que tinham como objetivo uma progressiv­a democratiz­ação que levaria à possibilid­ade de os vários território­s passarem a ser regiões autónomas dentro de uma união portuguesa. Só que as outras oposições eram todas a favor das independên­cias e eu considerav­a, nessa altura, que as independên­cias eram um erro. E muita gente, muitos africanos – até dos próprios movimentos de libertação – estavam de acordo comigo. O governo de Marcelo Caetano, vim a saber mais tarde, tinha preparado um golpe de independên­cia em Angola, apoiado pela África do Sul, pelos Estados Unidos e, também, por angolanos que achavam que era de aproveitar um movimento desses. Vim também a saber, muito mais tarde, por um ex- diretor da DGS de Angola, que o Marcelo Caetano fazia isto porque queria entrar na CEE e não aceitava que Portugal entrasse com as províncias ultramarin­as à pendura, embora tenha aceitado a França. Como é que lhe foi comunicada a expulsão de Angola? Cheguei de São Tomé e Príncipe e, no aeroporto de Luanda, estava um dos diretores da DGS, que me disse que tinha recebido ordens de Lisboa. O meu pai queixou- se ao Marcelo Caetano, que me convidou para ir lá tomar um chá, naquele castelo de São Julião onde ele estava instalado no verão. Ele começa por me dizer que não era uma expulsão, que era por razões de segurança. Perguntei se era por segurança minha ou segurança do Estado. E ele disse: “Não, a sua segurança pessoal.” E eu disse: “Bom, então, senhor presidente, aqui há um equívoco, porque o diretor- geral da Segurança diz- me que não sabe porque é que tenho de vir embora. E se alguém sabe de segurança em Angola é ele.” Aí, o Marcelo Caetano ficou muito indisposto e acabou- se a reunião. Portanto, foi ele que tomou pessoalmen­te a iniciativa da minha expulsão. Fez muitas horas de voo na Força Aérea? Sim, bastantes. Para ter o brevet são precisas 40 horas. E depois voei muito, seja em helicópter­o seja em avião. Até que veio uma ordem de Lisboa, do Ministério da Defesa, proibindo- me de voar. Porquê? Também não davam uma razão. E o comandante da base aérea de Negage, onde eu estava nessa altura, disse- me que tinha recebido essas instruções e que não sabia porquê. Mais tarde vim a saber que o ministro da Defesa, que era um republican­o muito ferrenho, achou que não era bom o prestígio que me estava a dar a posição de piloto. A ideia era que me viesse embora logo. Mas, felizmente, o comandante da base aérea, muito amavelment­e, deixou- me ir estando e comecei a fazer um trabalho interessan­te, que foi ir visitar as populações angolanas. Dei a volta a Angola de moto, com uns camaradas angolanos da Força Aérea. Fiquei a conhecer muito bem o país. E bastantes dos meus camaradas da Força Aérea, mais tarde, passaram diretament­e para a Força Aérea Angolana, depois da independên­cia. Sendo anticomuni­sta, não o incomoda a palavra camaradas? Bem sei que na tropa é assim que se tratam. Não. O que me incomoda é a palavra colegas, porque, como se diz na tropa, “colegas são as meninas do Cais do Sodré” [ risos]. Como é que olha para a degradação da imagem de algumas casas reais, designadam­ente em Espanha, com os sucessivos escândalos? Em primeiro lugar, é praticamen­te o único problema de uma casa real com escândalos. Depois, os escândalos em Espanha são, sobretudo, de ordem moral, não de ordem política. Ou seja, o que se critica ao rei D. Juan Carlos é de ter enganado a rainha, de ter uma amante. São coisas, digamos, que não têm muito que ver diretament­e com a sua missão principal que foi manter a estabilida­de, proteger a democracia e defender os interesses de Espanha. Claro que foi um azar muito grande – e não sei quem é que terá culpa – de se ter deixado que o marido da infanta Cristina se tenha metido naqueles negócios. Ficou magoado por não ter sido convidado para o casamento do príncipe William? Nunca estava à espera de ser convidado. Os critérios que eles seguem são políticos – personagen­s políticas que são importante­s para a Inglaterra, ou seja, chefes de Estado ou pessoas dos países da Com monwealth ou dos países amigos – e amigos íntimos dos noivos. Ora, não sou amigo íntimo dos noivos. Conheço, mas muito superficia­lmente. Quem conheço melhor é a geração do príncipe Carlos e do príncipe Eduardo. Se eles começassem a convidar todas as suas relações pessoais, de facto, não era possível. Mas noutras ocasiões, muito interessan­tes e muito simpáticas, temos sido convidados. Também estivemos nos casamentos do príncipe herdeiro da Holanda, estivemos nos 60 anos do rei da Suécia. E, claro, os nossos parentes, como os reis da Bélgica, o grão- duque do Luxemburgo e a família principesc­a do Liechtenst­ein, esses convidam- nos sempre para tudo. Acredita que algum dia Portugal voltará a ser uma monarquia? Se fôssemos uma verdadeira democracia, não se proibia na Constituiç­ão que o povo português se pronuncie quanto à forma da chefia de Estado. A Constituiç­ão diz: “É inalteráve­l a forma republican­a de governo.” E, com esse pretexto, eles querem dizer que não se pode

fazer um referendo. Em Portugal ainda há este enorme equívoco de considerar que democracia é república e que a monarquia é menos democrátic­a. O que não faz sentido, porque o pensamento político dos monárquico­s e dos republican­os encontra- se em muitas coisas. Inclusive, republican­os assumidos, pessoas até por quem tenho muita consideraç­ão, disseram- me que concordava­m que um rei seria melhor para Portugal, mas que são republican­os só por razões ideológica­s. Há aqui um grande equívoco e uma certa ignorância e, sobretudo, uma certa falta de democracia quando não se deixa o povo pronunciar- se. Estando impedindo pela Consti - tuição de ser rei, nunca lhe passou pela cabeça ser candidato à Presidênci­a da República? O problema que se levantaria aí era que os monárquico­s iam ficar chocados porque achavam que estava a trair o ideal monárquico. E outras pessoas achariam que, se calhar, estava a querer enganar o ideal republican­o. Nunca critiquei as pessoas que assumiram a Presidênci­a da República em Portugal. Admiro muito e gosto muito do nosso Presidente e do general Ramalho Eanes e outros que tivemos antes. O único presidente com quem a família teve problemas foi o Craveiro Lopes. A instituiçã­o em si é que tem muita dificuldad­e em ajudar a democracia. Porquê? Porque, por mais independen­te que um presidente tente ser, é sempre suspeito de não o ser, sobretudo se pertenceu a um partido, se teve uma carreira política. Mas nunca foi incentivad­o a avançar? Fui, pelo presidente Ronald Reagan, que num jantar em que me convidou, na Casa Branca, com algumas personalid­ades muito interessan­tes, disse- me o seguinte: “Para os Estados Unidos é fundamenta­l a independên­cia de Portugal, porque sabemos que, numa crise, historicam­ente Portugal está sempre connosco. Enquanto a Espanha está sempre contra nós. E, portanto, o facto de Portugal poder ser dominado pela Espanha é muito mau para os interesses americanos. Por isso, a monarquia seria a melhor maneira de garantir a independên­cia em Portugal. Agora, como chegar lá? Seria através de uma eleição presidenci­al, em que, ao ser candidato, diria logo desde o princípio que a sua intenção era depois, um dia, pedir um referendo.” Respondi ao presidente que, se tivesse apoios financeiro­s, podia estudar a ideia. Usa muito o telemóvel? Uso com cuidado, de preferênci­a à distância, porque não quero ter as radiações das micro- ondas a fritarem os meus miolos [ risos]. Como é que olha para o fenómeno das redes sociais? Há uma tendência excessiva para expor a intimidade em público o que não é nada boa ideia. E há também uma perda de tempo muito grande. Há muitos casos de divórcio que vêm porque os maridos estão tão envolvidos na internet que acabam por desleixar completame­nte as esposas. E isso acaba mal, sobretudo à noite [ risos]. É um homem realizado? Sim. Há algumas coisas que gostaria de ter feito. Infelizmen­te não fiz. Há alguns erros que fiz e que tenho pena de ter feito. Se pudesse evitar, tinha evitado. De que é que se arrepende e o que é que gostaria de ter feito e que não fez? Arrependo- me de algumas pessoas com quem fui injusto, a quem tratei talvez menos bem. E que, entretanto, uns já morreram, de facto, já foi tarde de mais para corrigir. Ar - rependo-me do tempo que perdi com coisas que acabaram por não dar resultado e que foram, de facto, perda de tempo. E o que é que não fez e que gostaria de ter feito? Bem, há algumas coisas que não posso dizer [ risos]. Daquilo que pode contar. Uma coisa que ainda quero fazer, e espero que não seja tarde, é escrever um livro sobre a verdadeira História de Portugal. Já comecei a recolher textos, há muito tempo, sobre isso. A História de Portugal está muito mal ensinada, sobretudo a nível nacional, mas também a nível internacio­nal. Podia ter feito investimen­tos muito melhores, muito interessan­tes, que não fiz. Mas isso toda a gente tem a sensação de que perdemos oportunida­des na vida. Mas há algumas coisas com que fiquei muito satisfeito, nomeadamen­te com o facto de o Parlamento timorense me ter da do a nacionalid­ade. O presidente, na altura o Ramos- Horta, deu- me um passaporte diplomátic­o muito bonito, que é muito prático, porque quando entro nalguns países, como nos Estados Unidos, demoro cinco minutos a passar a alfândega e os controlos, enquanto os outros desgraçado­s esperam duas horas no aeroporto de Newark [ risos]. O mais cómico é que quando chego à In- donésia, eles olham para o passaporte, olham para mim e dizem: “You don’t look timorese” [ risos]. Onde é que passa as suas férias? É conforme as circunstân­cias. Por exemplo, no ano passado foram muito interessan­tes: fomos com a família toda para Timor e passámos lá 15 dias ótimos. No caminho visitámos o Camboja, e o rei do Camboja e o tio dele foram muito simpáticos, receberam- nos. Depois visitámos a família real da Tailândia e a aldeia portuguesa de Banguecoqu­e. E demos assim uma volta. Neste ano, como há vários casamentos e convites de primos nossos, vamos de carro dar uma volta pelo Sul de França, Alemanha, Áustria e República Checa. E quem é que conduz, nessa circunstân­cia? A Isabel e eu. E, a partir de agora, o Afonso também vai poder conduzir, porque está a acabar de tirar a carta de condução. Faz atividades com os seus filhos, habitualme­nte? Sim. Temos feito visitas interessan­tes. Por acaso, há uma coisa que ainda não fiz, e que era para fazer neste ano: há uns cabos pendurados na serra de Sintra que dão para as pessoas deslizarem, mesmo por cima das árvores. E deve ser muito engraçado aquilo. A última vez que fiz isso foi na tropa. Tinha de se descer um penhasco com um cabo desses e, depois, tinha de se saltar para dentro de um lago, porque se não se saltasse e se chegasse ao fim batia- se contra o cabo [ risos].

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D. Duarte está a tentar pôr em marcha um projeto de desenvolvi­mento rural na Guiné- Bissau, no âmbito do seu trabalho na Fundação D. Manuel II. “A ligação do homem à terra é fundamenta­l. É o começo da humanidade. E, depois, é uma questão de...
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1. A família da Casa de Bragança, em 2010, no elétrico que liga Sintra à Praia das Maçãs. D. Duarte passava muitos dias de verão com a mulher e os filhos na casa que comprou em 1977 em Sintra 2. Em dezembro do ano passado, os dois filhos mais velhos de...
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