Viagem ao desconhecido: a vida, a obra e os lugares de Bocage
Celebração da vida e dos lugares do poeta com antologia poética, tertúlias, poesia no meio da rua e um itinerário bocagiano
“Magro, de olhos azuis, carão moreno.” Eis Manuel Maria Barbosa du Bocage, poeta, libertino e livre- pensador, do qual sobram profusas anedotas, meia dúzia de ditos nos quadros de Fernando Santos pendurados no café Nicola e pouco mais, quase nada que diga da sua importância na Lisboa setecentista e na nossa história literár i a e política. Em ano de comemoração redonda, Santa Maria Maior ( e Miguel Coelho, presidente da junta e responsável pela iniciativa) reclama para a freguesia a celebração da vida, da obra e dos lugares de Bocage, propondo uma viagem que passa tanto pela geografia real como pelo mapa literário de há dois séculos e meio.
“Era preciso, sobretudo, dar a conhecer o poeta que já nem se estuda e o l i vre- pensador que Bocage foi”, começa por dizer Maria Ant ónia Oliveira, comissária do programa Bocage Reconhecido. “É fundamental lê- lo.” Não apenas porque a qualidade da obra ultrapassa o anedotário a que o autor, primeiro dos poetas românticos, é frequentemente reduzido, mas também porque precisamos dele. “Qual a nossa leitura da poesia de Bocage, nós que pertencemos a um tempo conturbado, que se quer morno e correto, que aplaude a frouxidão instalada no quotidiano – e simultaneamente alimenta fanatismos? De tudo isto fala Bocage, por vezes de forma contraditória”, lembra Maria Antónia na antologia poética que agora se edita e que abarca várias fases e influências na sua obra ( e que estará disponível nos eventos desta celebração a um preço simbólico de cinco euros).
É também a única enquanto não é reposta a Obra Completa, coligida por Daniel Pires em 2004 e entretanto esgotada. Há que lê- lo, pois, e também ouvi- lo, com as Brigadas Bocage, atores, músicos e fadistas que, do Largo do Chafariz de Dentro ao Chiado, do Castelo à Casa dos Bicos, hão de trazer para a rua a poesia do vate, tal como a pensou o Teatro da Garagem.
Há que conhecê- l o t ambém pelo olhar de Nuno Saraiva e das ilustrações que criou, uma coleção de caricaturas de musas, amigos e inimigos que se espalha pela Rua Augusta, Rossio e Martim Moniz, num percurso que se cruza com os itinerários bocagianos, pensados para percorrerem obra e vida. “Quisemos retirá- lo do anedotário mas não branqueá- lo. Era um boémio, um espírito truculento”, diz Maria Antónia Oliveira, a desenhar o mapa dessa Lisboa de f i nais do século XVIII, quando a intelectualidade vadiava pelas tabernas, pelos salões e pelos bordéis.
A viagem começa no Terreiro do Paço, onde Bocage chega, aos 18 anos – vindo de Setúbal, onde nasce a 15 de setembro de 1765, segundo filho de um advogado que é preso quando Manuel Maria t em 6 anos ( na mesma prisão onde há de ir parar o filho), pouco antes de ficar órfão de mãe –, e l ogo ganha f ama de improvisador de versos nos botequins da cidade, ainda semidestruída pelo Grande Terramoto.
Aos 21 anos embarca para a Índia. A biografia breve há de contar que foi duas vezes desertor, passou por Goa, Damão e Macau, glosando o percurso de Camões, antes de regressar de vez à capital do império em 1790 e editar o primeiro sucesso, Rimas, um ano depois. Junta- se à Nova Arcádia, socieda- O café Nicola recebe nesta noite uma tertúlia; Miguel Coelho, Maria Antónia Oliveira e Paula Tomás são os principais dinamizadores das comemorações dos 250 anos do nascimento de Elmano Sadino
Nuno Saraiva criou uma coleção de caricaturas
de literária tão cheia de egos como de prosápia, toma o pseudónimo de Elmano Sadino e vê a carreira de poeta ganhar fôlego até que a academia o expulsa – ou melhor, o seu amigo e rival e depois inimigo figadal padre José Agostinho de Macedo, acusando- o de se julgar “o sultão do Parnaso português”.
Era um polemista brilhante, frequentando tabernas e salões com o mesmo à- vontade e fazendo inimigos em ambos os lados. Sempre viveu de expedientes e versos vendidos na rua, pendurado na bondade e na casa de amigos, apesar do sucesso da sua poesia. A força dos seus versos e da sua veia satír i ca valeram- l he a perseguição pelo intendente Pina Manique, que dele quis fazer exemplo.
E é justamente na antiga cadeia que foi Paço Real e agora é o Centro de Estudos Judiciários que termina a travessia bocagiana, a sublinhar o quanto ela foi decisiva na morte do poeta, a 21 de dezembro de 1805, sete anos depois da prisão e consequente processo de “reeducação” no catre da Inquisição. Fernando Silva, sociólogo feito cicerone pela história de Bocage no Limoeiro, há de mostrar a “enxovia” ( espaço de reclusão comum para onde eram atirados homens e crianças) e o “segredo” ( solitária) onde o poeta passou três meses ( e descreveu copiosamente em poema) “sem ter cometido qualquer crime, a não ser o de pensar l i vremente”, a cisterna, onde o livro de assentos regista a