Usurpação de poder
PAULO BALDAIA
Ninguém sabe com certeza o que vai fazer o Presidente da República. Se entre o que se faz e o que se diz houver alguma coerência, Cavaco Silva não indigitará António Costa para lhe apresentar uma solução governativa e manterá o actual governo em gestão, até que chegue alguém e possa resolver de outra maneira. E o que sobra para o próximo inquilino de Belém é a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições antecipadas. Ou seja, o Presidente, que está impedido pela Constituição de utilizar a bomba atómica nos últimos seis meses do seu mandato, vai usá-la na mesma, mas ao retardador. A Lei Fundamental retira-lhe o poder, mas ele pode usurpá-lo.
Os limites do nosso sistema político estão, aliás, a ser mais testados nestas últimas três semanas do que numa revisão constitucional. Não me parece que alguém se lembrasse, em sede de revisão, de formular de forma diferente daquela que lá existe os passos que o presidente tem de dar para indigitar um primeiro-ministro, de modo a tornar natural a escolha do principal derrotado da noite eleitoral. Nem estou a ver que alguém tivesse a infeliz ideia de tornar constitucional a existência de partidos de primeira (podem formar governo) e de segunda (não podem participar nem apoiar um governo). E, por fim, também não vejo quem se lembraria de lá colocar uma norma em que o Presidente passava a poder dissolver o Parlamento até ao último dia do seu mandato, indicando a data em que tal aconteceria.
Já sabemos que é Passos Coelho quem vai formar governo, já sabemos que as esquerdas o vão chumbar através de uma moção de rejeição ao programa de governo e ainda não sabemos o que vai fazer o Presidente da República. Como é de Cavaco Silva que estamos a falar, convém não dar por adquirida coisa nenhuma. As intervenções do actual Chefe do Estado, vistas na globalidade, contêm tudo e o seu contrário. Tanto que já disse e que pode servir de argumentação para dar posse a um governo das esquerdas, impondo condições relacionadas com os nossos compromissos internacionais. Tanto que disse na última intervenção que pode justificar a recusa de um governo de António Costa e a opção por um governo de gestão.
O poder não caiu na rua e só parcialmente se pode dizer que pertence ao povo. No radicalismo em que caímos formaram-se dois grupos claros, os que são visceralmente de direita e os que são visceralmente de esquerda, e um grupo bem maior do que estes dois juntos e que assiste atónito ao que está a acontecer. São os que já desistiram da democracia e há muito que não votam e os que são de um centro que ninguém quer representar e que podem engrossar a fileira dos que não votam. Os que se julgam donos do poder deveriam parar para pensar.