Diário de Notícias

Neste ano não vai haver espetáculo de passagem de ano em Albufeira

A Avenida 25 de Abril, coração da cidade, não é a da liberdade mas a da calamidade. A rua que era antigament­e uma ribeira é agora um mar de lama a atravessar hotéis, bares e restaurant­es. Os destroços afogaram o turismo

- RUTE COELHO

Dois dias depois, as ruas continuam cobertas de lama e o que mais se vende são galochas. Diretores de hotéis e lojistas dizem que o fim de ano morreu.

Do terraço do Hotel Baltum, unidade de três estrelas no coração turístico da Baixa de Albufeira, o panorama é de calamidade. Dois dias após as cheias de domingo, originadas por chuva intensa e que causaram um morto em Boliqueime, a Avenida 25 de Abril, construída por cima de uma ribeira, estava ainda transforma­da num mar de lama. O que mais se vendia na cidade eram as galochas, ao ponto de esgotarem na terça-feira em todas as lojas.

O impacte no turismo desta “Albufeira transforma­da em Iraque” – invocando a imagem dada por um empresário local – é avassalado­r e terá já efeitos no curto prazo. “A passagem de ano morreu em Albufeira. Não vai haver espetáculo na Praça dos Pescadores, a poucos metros daqui. Impossível”, Este é o desabafo de Fernando Arez, 65 anos, da direção do Hotel Baltum. A convicção é partilhada por empresário­s e lojistas que aguardam uma decisão do governo sobre a declaração de calamidade pública para a cidade, pedida pela câmara.

O Baltum, nome romano de Albufeira, cidade rica em águas, ficou com o rés-do-chão alagado e enlameado, sem eletricida­de, água e telecomuni­cações, como aconteceu com outros hotéis e aparthotel na Baixa e também com bares e restaurant­es. Toda a maquinaria, cozinha e mobiliário do restaurant­e concession­ado estão estragados. O camião parado à porta encheu-se do entulho que antes era riqueza, incluindo um quadro a óleo que agora parecia pintado a lama. “Tínhamos 30 turistas que tivemos de mudar para outras unidades hoteleiras menos afetadas”, contou ao DN Fernando Arez. O prejuízo, ainda não contabiliz­ado, é de “largos milhares de euros”. A direção tinha previsto obras de remodelaçã­o para janeiro mas tudo foi alterado: agora está encerrado sem data prevista para reabrir.

De frente para o hotel, avista-se a antiga fábrica de alfarroba e os armazéns do figo, memórias de um campo por onde as águas escoavam para o mar facilmente. Um campo onde se assentaram quilómetro­s de betão, uma antiga ribeira transforma­da em avenida e ainda um sistema de escoamento que se traduz hoje numa ribeira parcialmen­te encanada.

Nem a Câmara Municipal de Albufeira arriscou dizer por estes dias a que prazo está Albufeira de voltar à vida. Mas ainda vai demorar. O Edifício Albufeira, de apartament­os para arrendar a turistas, tinha o balcão da receção vazio. Da gerência, nem sinal. “O dono disto ia morrendo quando a avalancha de águas, pedras e lama rebentou a montra da loja de viagens que também é deles”, conta Nélio, empregado numa pastelaria ao lado.

À garagem do Edifício Albufeira foram parar dois carros a boiar que se juntaram a outros automóveis que estavam no interior. Na terça-feira, ainda um automóvel estava bloqueado na lama e nas pedras à porta da garagem.

Seguindo pela Avenida 25 de Abril vai-se dar à Avenida da Liberdade onde o cenário ainda é mais dantesco. Olhamos com espanto para as crateras abertas no asfalto, a calçada portuguesa arrancada no Largo Eng. Duarte Pacheco, as caves inundadas de lama e as paredes destruídas de restaurant­es e bares, os carros meio soterrados e encavalita­dos no solo, a estrada de acesso a Albufeira feita em pedaços. E diante de todo este horror pensa-se em como a chuva torrencial a cair durante oito horas se assemelha ao impacto de um forte sismo.

“Isto parece o Iraque!” Na rua dos Bares, na Baixa de Albufeira, o cenário é de fim de festa. Os placards que anunciam karaoke e cocktails, tão ao gosto dos turistas boémios ingleses ou holandeses, são das poucas coisas que restam de pé em alguns destes estabeleci-

mentos noturnos. Um deles, o bar D&C, parecia ter sido bombardead­o, sem a fachada da frente, com a cave inundada a uma altura superior a 1,50 metros e uma parede da área do economato rebentada pela força das águas. “Isto parece o Iraque”, desabafa Carlos Mourão, o proprietár­io de 38 anos que veio de Lisboa para montar bares no Algarve. Só com o D&C, que abriu num ano de cheias (2008), conta ter “150 mil euros de prejuízo: 100 mil euros na parte da cave onde estava a cozinha e 50 mil euros na parte de cima”. Nada se salva nas máquinas industriai­s do economato e as paredes revestidas a pladur com isolamento acústico vão ser todas substituíd­as porque a água infiltrou-se em tudo, como uma praga. Todo o rés-do-chão é comércio “Não vai haver uma única agência de viagens a vender bilhetes para esta calamidade”, assegura Carlos Mourão, coberto de água e de lama, à beira do desânimo. Os amigos e familiares passavam por ele a carregar baldes, escadas acima, escadas abaixo, a levar entulho e lixo disforme, numa corrente de solidaried­ade que atravessa toda a cidade.

Até ao fim de novembro era uma “época boa” para os bares. Depois esperava-se pela nova época alta: a passagem de ano. Agora ninguém acredita que possa haver receitas nessa altura. “O fim de ano? Não faço ideia como vai ser. No meu bar tenho pela frente mais uma semana de limpeza só para tirar a lama. Muita gente no comércio e na restauraçã­o não tem os meios nem os seguros para recuperar. Nós temos seguro mas ainda não temos a certeza da cobertura, está em processo de avaliação”, afirma Carlos. “Tudo o que é rés-do-chão na Baixa de Albufeira é comércio”, resume. E o comércio, para já, está de rastos. Como a pilha gigantesca de terra com sapatos, botas e chinelos que o DN viu à porta de uma loja chinesa na Avenida da Liberdade: a concentraç­ão do caos.

Nessa mesma avenida, o casal britânico Allan e Vallerie, 78 e 73 anos, respetivam­ente, turistas em Albufeira há cinco anos consecutiv­os, olhavam desolados para o trabalho dos voluntário­s. “Chegámos no sábado e no domingo aconteceu esta catástrofe. Nem queríamos acreditar!”, contou Allan, com Vallerie a seu lado, emocionada, de lágrimas nos olhos. “Sentimo-nos tão tristes por estas pessoas, é de partir o coração. Ontem quando cheguei aqui apeteceu-me tirar o casaco e ajudar toda a gente”, adiantou o turista britânico. Tinham férias marcadas por dez dias, que vão manter. “Nem pensamos em cancelar, de maneira nenhuma”, diz Vallerie.

Patrícia, 22 anos, enfermeira, do Alentejo, começou a trabalhar em Albufeira há um mês, e Ana, 28 anos, de Coimbra, empregada na Marina desde junho, vivem nos apartament­os Ribeira Park, na Avenida da Liberdade, que acolhe jovens em trabalhos temporário­s. “No domingo fomos à janela, no segundo andar, ao meio-dia, e não fomos tirar os carros. Em meia hora a água transformo­u-se num rio. Já não pudemos tirar os carros que tinham água pelo vidro. Ficámos encurralad­as até às 20.00 e quando saímos tínhamos água pelo joelho”, contou Patrícia. Na avenida, os carros dos lojistas estavam soterrados. As duas vizinhas conheceram-se na catástrofe.

 ??  ?? Na Avenida 25 de Abril acumulou-se lixo e lama que três dias depois das cheias ainda estavam a ser retirados pelos lojistas e pelos voluntário­s
Na Avenida 25 de Abril acumulou-se lixo e lama que três dias depois das cheias ainda estavam a ser retirados pelos lojistas e pelos voluntário­s
 ??  ?? Fernando Arez, da direção do Baltum, diz que não haverá festa de fim de ano
Fernando Arez, da direção do Baltum, diz que não haverá festa de fim de ano
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal