Por amor de Deus
JOÃO PEDRO HENRIQUES
Calvão da Silva entrou a pés juntos na primeira linha da atualidade política invocando sucessivas vezes o nome de Deus, numa visita que fez ao Algarve para se inteirar dos efeitos das cheias do fim de semana. Foi alvo de chacota, à qual, como é hábito, se misturou alguma ignorância (como explicou o advogado e ex-deputado do PSD José Eduardo Martins, quando o ministro falou no act of God para explicar as cheias, estava, na verdade, a usar um termo legal usado no direito britânico para caracterizar acontecimentos fora do controlo humano pelos quais ninguém pode verdadeiramente ser responsabilizado). Lamentavelmente, Calvão é só um exemplo de uma prática em crescimento na classe política: invocar Deus ou, muito especificamente, o Papa Francisco.
É fácil de antecipar que nas próximas eleições presidenciais os candidatos, com maiores ou menos credenciais enquanto católicos praticantes, farão exatamente o mesmo (já começaram a fazê-lo, aliás). Lamento, por acreditar honestamente que Francisco não faz as suas homilias pensando-as como munições para políticos à caça de votos. Esperar que ao invocar-se Deus sucessivas vezes ou a palavra humanista do Papa Francisco se esteja a captar voto católico é, no mínimo, tratar os católicos como crianças. Terá havido um tempo em que eram genericamente autómatos dirigidos pela palavra do clero. Ninguém sério pode dizer hoje que isto é assim. E sendo Francisco o Sumo Pontífice da Igreja Católica, não é por isso automaticamente o Sumo Pontífice da ética social e do humanismo. Ser crente não transporta consigo automaticamente uma caução de qualidades humanas – muito menos acontece que essas qualidades humanas aumentem progressivamente à medida que se sobe na hierarquia.
Qualidades como a bondade, o humanismo, o sentido de respeito pelo outro e a lealdade são características possíveis em todos os seres humanos, sejam ou não crentes (conheço, aliás, várias pessoas cujo amor geral à humanidade não se transpõe minimamente para o amor ao vizinho do lado).
Infelizmente, este abuso político tem sido legitimado pela hierarquia. Ainda um dia destes ouvimos D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, dizer que o “mais natural” seria o país ser governado por uma coligação PSD-PS-CDS. Numa declaração ao DN, um seu colega, D. Jorge Ortiga, deu-lhe o necessário chega para lá: “Como Igreja, não nos compete avançar qualquer cenário, não nos compete imiscuir em questões especificamente políticas.”
Temos, portanto, políticos que andam oportunisticamente às cavalitas de Deus e dos seus agentes na Terra e bispos que querem fazer política. Vá, deixem-se disso, uns e outros, por amor de Deus.