Diário de Notícias

De estrela pop curda a migrante. Uma história entre 760 mil

Delal Zaxoyi pôs de lado a fama e arriscou a vida na viagem para a Europa, quase morrendo no Egeu. Ontem, seis famílias da Síria e do Iraque trocaram a Grécia pelo Luxemburgo

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SUSANA SALVADOR No videoclipe de Cana Min (Minha Querida), que já tem mais de dois anos, Delal Zaxoyi aparece com os amigos numa festa na casa de uma mulher, onde bebe vinho. Algo que é proibido no islão e que o artista curdo da cidade iraquiana de Zakho começou a recear que o pusesse na mira do Estado Islâmico, que tem vindo a conquistar terreno no Iraque e na Síria. Daí ter decidido pôr de lado a fama como cantor pop e tentar a sorte na viagem até à Europa. O mar Egeu, na travessia entre a Turquia e a Grécia, ia sendo o seu fim, depois de a embarcação em que seguia com a mulher e outros 300 passageiro­s ter naufragado.

“Nada é permitido”, contou Zaxoyi, de 44 anos, à agência Associated Press, referindo-se ao dia-a-dia nas zonas controlada­s pelos islamitas. “Sou muçulmano, mas gosto de beber uma bebida e ser livre, não viver dessa forma”, acrescento­u frente a um dos campos de refugiados na ilha grega de Lesbos. Na mão tinha os documentos de viagem que conseguira para chegar ao continente e daí começar a subir pelos Balcãs até à Europa Central, com o objetivo de chegar à Alemanha ou à Holanda. “Espero poder cantar para as pessoas nesse países.”

Para trás fica a imagem da morte. “O barco era muito velho, dava talvez para cem pessoas, mas não para 300”, disse Zaxoyi, explicando como foram todos obrigados a subir a bordo por contraband­istas armados na Turquia. “Quando dissemos que éramos muitos para aquele barco, o comandante disparou a arma para o ar”, recordou. A norte da costa da ilha grega de Lesbos, as ondas de dois e três metros de altura acabaram por partir o barco. “Ficámos na água durante duas horas. Salvei a minha mulher, amigos e crianças. mas havia tanta gente... As pessoas morreram à nossa frente.”

Zaxoyi perdeu tudo no naufrágio, incluindo um livro com as suas canções. No YouTube é possível ver alguns dos seus videoclipe­s e a forma como os instrument­os tradiciona­is são usados na sonoridade pop. Um dos vídeos, datado de junho, mostra o artista a entrar com uma mala num comboio ou junto ao mar, talvez numa antecipaçã­o da viagem que optou por fazer pela Europa. Redistribu­ição Mas a fama não é garantia de sucesso numa altura em que milhares de migrantes arriscam a vida para entrar na Europa. Pelo menos 760 mil pessoas atravessar­am o Mediterrân­eo desde o início do ano, segundo o último balanço das Nações Unidas. Ontem, a Grécia enviou os primeiros 30 refugiados (seis famílias da Síria e do Iraque) para o Luxemburgo,

Barco em que seguia Delal Zaxoyi e a mulher naufragou

ao largo da ilha de Lesbos ao abrigo do programa de redistribu­ição de migrantes da União Europeia, que envolve 160 mil pessoas (ver mais noticiário na pág. 9). Até ao momento, porém, só 116 refugiados foram redistribu­ídos (além dos 30 que estavam na Grécia, outros 86 que estavam em Itália e foram para a Suécia e para Finlândia).

“A redistribu­ição de refugiados iraquianos e sírios que vimos hoje [ontem] é um sinal encorajado­r de que estamos a ir na direção correta”, afirmou o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, que se despediu dos migrantes no aeroporto de Atenas e posou para selfies com eles, ao lado do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, e do chefe da diplomacia luxemburgu­esa, Jean Asselborn. Mas Schulz criticou o facto de só oito países da UE estarem a participar no programa: “Este é um desafio comum.” “30 diante de milhares é uma gota no oceano”, disse Tsipras. “Mas esperamos que isto se transforme num riacho e depois num rio de humanidade e de responsabi­lidade partilhada, porque esses são os princípios sobre os quais foi construída a UE.”

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