O Hospital de Bonecas é uma das Lojas com História
Programa municipal distinguiu 63 lojas centenárias da cidade. Comerciantes dizem que é positivo, mas não chega
Há a sala de espera, a sala de operações, onde estão de serviço a Dra. Lurdes, a Dra. Elvira e a Dra. Catarina, depois a sala dos utentes com alta. Parece um hospital e é mesmo – um hospital a sério para bonecos de brincar. Além do hospital, há o museu: sete salas com mais de três mil bonecas expostas. “Se eu fosse brinquedo gostava de morar aqui”, deixou escrito uma menina.
Desde a geração dos avós que a família de Manuela Cutileira está no número sete da Praça da Figueira. A fundação do Hospital de Bonecas remonta a 1830. Reza a história que D. Carlota, a fundadora, “se sentava a fazer bonecas de trapos à porta da sua pequena loja de ervas secas”. Nesse tempo havia um mercado na praça e as crianças que por ali viviam ou passavam iam trazendo as suas bonecas para a D. Carlota consertar . Assim começou o negócio – “uma missão”, nas palavras da atual proprietária – agora centenário.
O Hospital de Bonecas é um dos estabelecimentos de Lisboa que vão receber o distintivo Lojas com História – o mesmo nome do programa camarário que visa distinguir e promover as lojas lisboetas que se destacam como uma marca diferenciada no comércio da capital. Para já, são 63 as eleitas para receber este título. Mas fará diferença num contexto em que muitos dos negócios mais antigos e tradicionais estão a desaparecer, sobretudo na Baixa lisboeta?
Manuela Cutileira não dá por mal entregue a distinção: “Tudo o que nos diferencie é bom. Nisso não somos esquisitos, agradecemos tudo.” Pelas paredes das salas do museu multiplicam-se as reportagens, a maior parte estrangeiras, sobre o Hospital de Bonecas. A proprietária até consegue identificar o efeito desses trabalhos – nos últimos meses, por exemplo, tem recebido muitos russos e ucranianos, depois de televisões locais terem estado na Praça da Figueira a fazer reportagens sobre o espaço. No museu, boa parte dos visitantes são turistas (e há “muito mais visitas nos últimos anos”), mas Manuela Cutileiro diz que a sobrevivência se deve em grande medida ao desdobrar de atividades – ali reparam-se bonecas e acessórios (mas também outros objetos, como faianças), fazem-se fantasias de Carnaval para crianças. Até a componente de ervanária, da fundação da loja, se mantém. “Estamos sempre a inventar coisas. Nunca rejeitamos trabalhos, tentamos aproveitar as várias épocas, como o Carnaval. Acho que isso é a explicação da nossa sobrevivência”, diz ao DN.
“Para nós não é importante que nos deem subsídios ou baixem as taxas camarárias. O que queremos é respeito e reconhecimento por aquilo que fazemos”, sublinha Manuela Cutileira. Mas há um ponto, que há de ser repetido noutras lojas: o espaço do Hospital de Bone- cas é arrendado e uma mudança relevante na renda seria incomportável: “Se isso acontecesse tínhamos de arrumar as bonecas e ir para casa. Não tínhamos mais nada a fazer.” Mais jornalistas que clientes “Oh não. Outro jornalista?!” Ao balcão da retrosaria Bijou, na Rua da Conceição, Teresa Almeida revira os olhos: “Nos dias que correm falo mais com jornalistas do que com clientes.” Olhando para o lado percebe-se a frase. De máquina fotográfica em punho, Gulliver Theis regista todos os pormenores da Bijou. O fotojornalista alemão está a fazer um trabalho para a Merian, uma revista de viagens sediada em Hamburgo e que vai dedicar uma das próximas edições a Lisboa. E vai centrar o trabalho nas lojas antigas. Porquê? “Porque ainda existem” é a resposta – “Na Alemanha já não existe nada disto.”
“Publicidade não nos falta”, diz Teresa Almeida, que mantém com o irmão a loja que o avô assumiu em 1922 (antes disso Augusto d’Almeida era funcionário da loja, fundada em 1915). Na Bijou também há mais turistas, mas não é por isso que há mais retorno financeiro : artigos de retrosaria não entram na lista de compras. “Os turistas entram, veem, gostam, mas não ganhamos nada com isso”, diz ao DN. “Claro que está difícil”, acrescenta, antes de defender que “não basta um selo, é preciso fazer mais” pelas lojas históricas de Lisboa. Facilitar o acesso das pessoas, por exemplo. Numa Rua da Conceição congestionada de trânsito a qualquer hora, a comerciante diz também que “os clientes se queixam de que os parques de estacionamento são caríssimos”. O fantasma dos despejos Na Rua dos Bacalhoeiros, a Conserveira de Lisboa é um entra e sai de turistas. A loja tem traços co- muns às anteriores: um negócio centenário que, de geração em geração, se mantém na mesma família. Tiago Ferreira, que agora gere a conserveira, conta que a loja começou por ser, nos anos 1930, uma mercearia, especializando-se depois nas conservas. Em 1940, os sócios, entre os quais se contava o avô (que começou como empregado), fazem uma coisa que o neto classifica hoje como visionária – registam as marcas que ainda hoje enchem as prateleiras da loja, a Tricana, a Minor e a Prata do Mar. “Se sobrevivemos hoje também se deve um pouco a isso”, argumenta, contando que a loja passou uma fase difícil com o aparecimento das grandes superfícies. “Era impossível competir pelo preço. O que fizemos foi primar pela qualidade.” Agora, “num bom dia vendemos 1500 latas de conserva”, diz o engenheiro eletrotécnico . O que significa que “a Conserveira é uma empresa economicamente saudável. Financeiramente passa as dificuldades de trabalhar num negócio de tostões, com margens muito reduzidas”.
Sobre o programa Lojas com História, defende que “é válido e faz todo o sentido”: “Em Barcelona foi feito um reconhecimento póstumo de algumas marcas, em Lisboa ainda vamos a tempo de fazer um reconhecimento em vida de algumas coisas emblemáticas da cidade.” Vai ajudar? “Se for bem comunicado, bem trabalhado, pode dar uma certa visibilidade, ser um selo efetivo de identidade, de qualidade. Não vincula legalmente nenhuma proteção direta, mas acho que ajuda”, defende.
Mas Tiago Ferreira também sublinha que o essencial é outro ponto, criar na Lei do Arrendamento uma regra de exceção para as lojas classificadas – “Isso, sim, seria um passo extremamente importante para a proteção destas lojas.” A Conserveira de Lisboa está num espaço arrendado e “se o senhorio se lembra de sair fora de algo aceitável...”. Uma mudança de morada está fora de causa: “São 86 anos aqui, foi aqui que se tornou emblemática. Não faz sentido que seja noutro sítio.”
Duarte Cordeiro, vice-presidente da Câmara de Lisboa, defende que o programa Lojas com História pode dar uma ajuda quanto à questão dos despejos unilaterais que já obrigaram ao encerramento de muitas lojas da Baixa. Atualmente , se um proprietário invocar a necessidade de obras profundas, pode ditar a saída da atividade comercial que exista no edifício mediante o pagamento de uma indemnização. Na Assembleia da República está uma proposta que abre caminho à criação de uma exceção para lojas classificadas. Duarte Cordeiro diz que este processo – atribuindo esta distinção “de forma bastante criteriosa” e funcionando como garantia de que os critérios “não vão ser banalizados” – pode dar algum “conforto” aos deputados para avançar com medida, que está fora da alçada da câmara. Fundo de 250 mil euros Aprovado nesta semana em reunião do executivo camarário, o fundo municipal do Lojas com História vai ser constituído, para já, com um montante de 250 mil euros. O valor foi criticado pela oposição, mas o vice-presidente da autarquia desvaloriza: “Arrancamos com este valor. Se se verificar que é reduzido, tanto melhor, é bom sinal, reforçaremos a verba disponível.”
O fundo poderá ser usado para comparticipação – até 80% e um máximo de 25 mil euros – para obras de arquitetura e restauro (conservação de fachadas, por exemplo) ou para “recuperação de equipamentos ou objetos decorativos identitários da loja”. A promoção de iniciativas culturais fica também abrangida, assim como a realização de “estudos e consultoria no domínio do marketing”. Não tendo esse fim específico, Duarte Cordeiro acredita que o fundo poderá dar uma ajuda a estabelecimentos em maior aperto financeiro, muitas vezes consequência de incapacidade de investimento.
Em “setembro, outubro” deverá ser conhecido um novo lote de Lojas com História, a partir daí a distinção será conferida mediante candidatura. Para já integram a lista nomes como os Pastéis de Belém, o restaurante Tavares, o Pavilhão Chinês, as pastelarias Versalhes, Mexicana e Benard, a livraria Ferin, a chapelaria Ulisses, o café Nicola, o café/restaurante Martinho da Arcada, a Primeira Casa das Bandeiras, a Drogaria de São Domingos, as farmácias Andrade (na Rua do Alecrim) e Barreto (na Rua do Loreto).