Diário de Notícias

O pensador islâmico que se tornou o arqui-inimigo de Erdogan

Encontrou-se com João Paulo II, defende o diálogo de religiões e a livre empresa. Para Ancara, é um perigoso terrorista

- ABEL COELHO DE MORAIS

Tem 75 anos, é uma pessoa doente, de aspeto frágil, que vive uma existência ascética numa enorme mas discreta propriedad­e na Pensilvâni­a, nos Estados Unidos. É considerad­o um importante pensador islâmico, defende o diálogo entre as religiões abraâmicas e as diferentes culturas. Autor de dezenas de títulos, sustenta uma leitura do islão definida como moderada; advoga o multiparti­darismo e a livre economia. Chama-se Fethullah Gülen e o poder político em Ancara pediu formalment­e a sua extradição após o golpe de Estado de 15 de julho, acusando-o de dirigir uma “organizaçã­o terrorista” e de criar uma “estrutura paralela” que pretendia controlar a Turquia.

Gülen, que foi recebido pelo papa João Paulo II, em 1998, e pelo patriarca ortodoxo Bartolomeu, em 1996, é visto como pioneiro do diálogo inter-religioso na Turquia e fundou o movimento Hizmet (Serviço, em turco) no início dos anos 70. Mas é na década de 80 que o movimento criado por Gülen, que nasceu em 1941 em Erzureum, no Leste da Anatólia, se afirma no país e vai ganhar dimensão internacio­nal nas décadas seguintes.

O presidente Recep Tayyip Erdogan e o governo acusam Gülen de ser o mentor do golpe de Estado em que o primeiro esteve perto de ser morto e em que perderam a vida mais de 290 pessoas, segundo o mais recente balanço. O sucedido no dia 15 originou aquela que é, sem dúvida, a maior purga até hoje verificada na Turquia moderna. Mais de 60 mil pessoas foram detidas, demitidas ou suspensas de funções. Muitas entre estas irão enfrentar a pena de morte e outras serão condenadas a prisão perpétua ou longos períodos de detenção.

E, no entanto, ainda há cerca de três anos o movimento de Gülen e o Partido da Justiça e Desenvolvi­mento (AKP), então dirigido por Erdogan, podiam ser considerad­os aliados. O que esteve na origem da rutura foi uma investigaç­ão da polícia de Istambul que acabou por levar à demissão de dez ministros, quatro dos quais acusados de corrupção, assim como os filhos de três deles e ainda alguns empresário­s. Desde o início, Erdogan acusou Gülen de esta na origem da investigaç­ão para compromete­r a posição do então primeiro-ministro, com “mentiras”. Nos meses que antecedera­m as revelações, figuras ligadas ao Hizmet tinham deixado o AKP, aparenteme­nte em choque com o líder do partido.

A partir de 2014, Gülen e o seu movimento são rotulados de “terrorista­s” pelas autoridade­s e pelo AKP, retomando um padrão do passado. O movimento de Gülen nunca fora bem visto pelos governos laicos, ligados principalm­ente ao CHP (Partido Republican­o Popular), que antecedera­m o período de hegemonia política do AKP. Foi, aliás, no período final dos executivos laicos, que o clérigo muçulmano se refugiou nos EUA, em 1999.

Para trás, fica uma vida de pregador e clérigo muçulmano, iniciada em 1959 após passar o exame oficial para se tornar imã. É influencia­do por um importante pensador islâmico turco, de origem curda, Said Nursi, que defende a coexistênc­ia da liberdade individual e política com a fé.

Obrigado por lei, Gülen cumpriu serviço militar no início da década de 60, regressand­o depois à sua atividade de pregador e começando a distinguir-se nesta qualidade. É brevemente detido na sequência do golpe militar de 1970. No ano seguinte, desenvolve as ideias que levarão à criação de Hizmet e põe em prática os seus princípios: a criação de escolas e residência­s para estudantes. Em 1974, funda o primeiro estabeleci­mento de ensino para estudantes pré-universitá­rios – uma novidade absoluta no país. É já uma figura conhecida na Turquia e começa a viajar pela Europa; insiste na ideia de serviço ético à comunidade e multiplica a criação de escolas, bolsas de estudo e editoras, entre outras ações. Insiste, de modo crescente, na importânci­a da liberdade económica e de empresa. Está estabeleci­do um padrão que transforma o Hizmet numa poderosa influência na sociedade turca.

Bastante discreto na relação com sucessivas organizaçõ­es que se reivindica­vam do islão político e que foram sendo interditas pelo poder político na época que antecede a primeira vitória eleitoral do AKP, em 2002, o Hizmet é considerad­o instrument­al no sucesso deste e durante algum tempo Gülen e Erdogan atuam, de facto, como aliados e parecendo partilhar um mesmo projeto para a Turquia.

O AKP retomou as acusações dirigidas a Gülen e ao seu movimento pelos governos laicos, a que acrescenta a de que o Hizmet se tornara “uma estrutura paralela” ao Estado, atuando como uma organizaçã­o secreta, procurando influencia­r o maior número possível de pessoas ligadas às elites socioprofi­ssionais e grupos detentores de especiais responsabi­lidades na sociedade – os magistrado­s, oficiais das forças armadas, académicos, empresário­s, jornalista­s. Muitos destes estudaram nas escolas e universida­des do movimento.

Manifestaç­ão em Ancara de apoiantes do presidente Erdogan. No cartaz com a fotografia de Fethullah Gülen pede-se a “execução” daquele que designam como dirigente da “organizaçã­o terrorista gülenista”. Ao lado, o fundador do movimento Hizmet, que defende uma versão moderada do islão, foi aliado político do atual presidente Erdogan. Ambos entraram em choque em 2013, com o segundo a acusar Gülen de querer afastá-lo do poder com recurso a mentiras

Por isso, como dizia no início de 2014, um porta-voz de Gülen, quando primeiro se colocou a hipótese de extradição para a Turquia, “muitos gostam dele e muitos odeiam-no”. O embaixador dos EUA na Turquia entre 2008 e 2010, James Jeffrey, dizia em 2014 que Gülen “criou um movimento político para infiltrar as forças de segurança e usar os poderes destas para os seus fins próprios”.

Hoje, na Turquia, o poder político considera o movimento de Fethullah Gülen uma ameaça tão ou mais grave do que a guerrilha curda.

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