Mar por todos os lados
Recomenda-se a todos mas, em particular, aos que viajem até aos Açores, com vontade de ver e não só de olhar
De todos os leitores que se apaixonaram por Portugal, utilizando como catalisador desse afeto a poesia, os mistérios, as ideias e a rede de afirmações e contradições de um tal Fernando Pessoa, será difícil descobrir um caso mais assolapado que o de Antonio Tabucchi, italiano de Vecchiano, Pisa. Começou por ler, traduzir e estudar o Poeta Plural, tão singular que trouxe este entusiasta ao mundo português. Com tanta intensidade e com tal assiduidade que ainda acontece sermos obrigados a procurar os seus livros nas prateleiras reservadas à “produção” nacional. O que acaba por aceitar-se, se pensarmos em dois dos melhores trabalhos do autor: Afirma Pereira, em que a defesa das liberdades aparece centrada num jornalista português, submetido – como todos, mas diferente de muitos – à censura do Estado Novo, que surge como uma personagem incontornável; depois, há o enredo, aterradoramente real de A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro, cujo ponto de partida está nos acontecimentos ocorridos numa esquadra, a de Sacavém, da Guarda Nacional Republicana. Ainda assim, ignorar A Mulher de Porto Pim, com sede geográfica, histórica e sentimental nos Açores, seria tão injusto como prejudicial.
Se há autores que não conseguem disfarçar, por mais polimento e mais camuflagens que apliquem, uma prosa “em esforço”, entrecortada, ziguezagueante, apresentada quase “por camadas”, Tabucchi mora exatamente do lado oposto – tudo é escorreito, linear, lógico. Parece escrito de rajada, sabendo nós que não é e que tal limpeza no desfecho deve ter correspondido a uma sobrecarga de trabalho. Mas compensa: num livro em que chegamos a assumir o papel da baleia, chamada a observadora do ser humano, em que cabe uma abordagem biográfica e sumária do percurso de Antero de Quental, em que cabe de tudo (até a publicação de excertos do regulamento aplicado na caça aos cetáceos), da mulher que dá origem ao título e estende a sua sombra muito além das páginas em que está efetivamente presente até ao recurso a passagens escritas por académicos, cientistas e interessados pelo fenómeno baleeiro, a linguagem – diversificada, claro está – aparece sempre com um rótulo de simplicidade, com uma capacidade epidérmica de contágio, com um extraordinário efeito no agarrar do leitor, sempre sem aparência de truques ou quaisquer sublinhados “cola-tudo”.
Convirá registar o seguinte: o cenário escolhido, desbravado, enaltecido, pelo escritor faz figura maior na lista de possibilidades para esse efeito de encantamento. A dimensão única dos Açores dá, neste caso, direito a duas abordagens complementares: a do estrangeiro – “duplo”, uma vez que se trata de um italiano, nem sequer um português do continente – que se deixa enfeitiçar pela beleza e pela dureza, em simultâneo, que percorre as escalas emblemáticas (por exemplo o porto da Horta) mas teima em aprofundar as suas escalas, na busca de uma essência que exige muito mais do que um simples mergulho turístico; depois, a do homem, um homem entre outros, que observa, apreende e escreve sem tirar os olhos do mar, essa fronteira poderosa e misteriosa que, reconhecidamente, ajuda a moldar o carácter e os anseios dos ilhéus. É nele que nos banhamos, sempre, seja na orla da praia ou sem terra à vista, às vezes com a prudência de quem não quer perder o pé, outras com o abandono de quem percebe que só lhe resta o mergulho e o desejo de não se deixar afogar. Em certa medida, aquilo que Tabucchi ensaiou, nesta aventura açoriana, pode estar abrangido pela literatura de viagens – mas, mais uma vez, o sentido é múltiplo, dando-se a circunstância de algumas das “viagens” propostas serem manifestamente interiores. É um livro de maré-cheia ou de preia-mar, como preferirem. Recomenda-se a todos mas, em particular, aos que viajem até aos Açores, com vontade de ver e não só de olhar. Antes, durante ou depois – vai sempre bem.
Reservado o direito de admissão a livros que não ultrapassem as 200 páginas.