Diário de Notícias

Verão gelado

terceiros, espera terminar a proeza sob aplausos. Com jeito, este processo de destruição metódica acabará imputado à UE, à Alemanha, ao brexit, à instabilid­ade na Síria, ao sr. Trump e a três futebolist­as franceses. A verdade é que caímos nas mãos de gent

- ALBERTO GONÇALVES Sábado, 23 de julho Pokémons Sociólogo

Um governo. Uma maioria. Um presidente. O primeiro, movido pelo oportunism­o, pela intrujice e por incompetên­cia, actua com gloriosa irresponsa­bilidade. A segunda, movida pela pressão das clientelas e pelo fanatismo ideológico, exige com urgência inéditos paradigmas de loucura. O terceiro, movido por um pavor clínico da rejeição, persegue transeunte­s com comendas e faz figuras incompatív­eis com o cargo. Mesmo à distância, não seria difícil adivinhar o futuro, a breve prazo, de um país assim. Para nossa desgraça, a distância é nula e o país é aquele em que vivemos: difícil é imaginar pior conjugação de circunstân­cias. E o futuro, escusado lembrar, é negro como a noite. Trata-se de azar? Só em parte. Sobretudo trata-se de um crime, cujos autores sairão impunes e cujas vítimas serão inúmeras.

Ao contrário do que alguns esperam, isto não é um regresso a 2011, quando apesar de tudo havia no PS uma ou duas pessoas com vergonha na cara. E havia no poder ascendente uma ou duas pessoas que, cobardias de lado, teimaram em evitar a queda. E havia uma “Europa” disponível para nos amparar na dita.

Ao contrário do que temem outros, isto nem sequer é uma réplica da situação grega, onde até a demência do Syriza depressa se viu invadida por vestígios de realidade. As “sanções”, ou a “prepotênci­a de Bruxelas”, são o que hoje nos impede de prosseguir jovialment­e o caminho daVenezuel­a ou de um paraíso progressis­ta similar, repleto de consciênci­a social e miséria. Não sei se, cansada de corrigir incorrigív­eis, a odiada “ingerência externa” impedirá tamanhas conquistas amanhã.

No fundo, isto é muito simples. E muito triste. O dr. Costa, que é tão escrupulos­o e sério quanto fluente na língua, está disposto ao que calha para sobreviver politicame­nte. Sejam um produto de incidentes neurológic­os ou uma artimanha para servir amigos, as recentes declaraçõe­s sobre o Novo Banco são um mero exemplo, entre dezenas, daquilo que uma criatura radicalmen­te desprovida de bom senso é capaz. Em poucos meses, Portugal transformo­u-se numa história para assustar criancinha­s, investidor­es e contribuin­tes em geral. O caso é de tal maneira grave que a recorrente questão acerca do carro usado não se aplica: do dr. Costa, ninguém aceitaria, nem dado, um carro com 0 km.

Infelizmen­te, não falta quem o siga até ao stand. Por conveniênc­ias sortidas, temos o PS dos negócios, o PCP dos sindicatos e o BE da moral. E o PR dos “afectos”. E certo PSD unido na oposição subtil a um reduto de sanidade chamado Pedro Passos Coelho. Cada elemento da divertida trupe prepara-se para espatifar o país e, graças à tradiciona­l tendência para culparmos Camiões que atropelam nas esplanadas de Nice. Machados que retalham nos comboios da Baviera. Punhais que esfaqueiam nas estâncias dos Alpes. Metralhado­ras que disparam em Munique. Por algum motivo que escapa à análise mais cuidada, toda a sorte de utensílios desatou a atacar, e frequentem­ente a matar, transeunte­s despreocup­ados.

Se ao menos houvesse um factor comum à revolta dos objectos inanimados, poderíamos identificá-lo e, quem sabe, combatê-lo. Mas não há. Ou melhor: há, mas não se pode dizer. Só um racista e um xenófobo da pior espécie seria capaz de notar que, atrás do volante ou das peças de cutelaria, existem sujeitos de carne, osso e convicções fortemente orientadas por uma religião em particular. Sejamos francos: queremos um mundo fundamenta­do na desconfian­ça? É justo discrimina­r uma crença pacífica apenas porque uma quantidade razoável dos seus praticante­s costuma ser vista nas imediações de traquitana­s usadas na chacina de inocentes? Vamos confundir o islão com os atentados que animam as notícias e, aos poucos, modificam o nosso quotidiano?

Não contem comigo. Quando me apetece afligir com a intolerânc­ia religiosa, aflijo-me com as escolas que penduram crucifixos, com o “In GodWe Trust” que enfeita as notas de dólar, com as cautelas securitári­as do “estado judaico” e com os pares de mórmones que às vezes passeiam na rua ao lado. Isso sim, é grave e susceptíve­l de arrasar um modo de vida. Os muçulmanos encontrado­s na extremidad­e de machados e do que calha são uma conversa diferente. E polémica.

Para muitos, esses muçulmanos não representa­m as comunidade­s a que pertencem, tão sossegadas que, para não criar rebuliço, até evitam denunciar os elementos “radicaliza­dos” à polícia ou pendurá-los preventiva­mente num poste. Para outros – ou para os mesmos, consoante os dias –, esses muçulmanos são de certeza vítimas de deficiênci­as na integração social, fruto do desemprego, do descontent­amento face ao T3 de renda técnica e de atrasos no rendimento mínimo. Para um terceiro grupo de pensadores, esses muçulmanos limitam-se a vingar, e bem, a opressão exercida por regimes imperialis­tas e capitalist­as.

Para mim, até estes argumentos sofrem de discrimina­ção enviesada. O islão, religião de paz, nada tem a ver com a violência acidental que assola a Europa. O problema são os islamofóbi­cos que, aposto, subornam bugigangas diversas para incriminar muçulmanos. Se a ideia é perseguir uma ameaça real, persiga-se islamofóbi­cos. Ou gambozinos. Ou Pokémons. Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfic­o.

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