Diário de Notícias

No mar, em busca de um porto seguro

Uma mulher que escapou do genocídio no Camboja em criança espera que a sua mãe a aceite tal como é atualmente. “Para a minha mãe, o facto de eu ser gay era pior do que fugir. Isso significav­a não cumprir o meu principal dever: casar-me com um homem.”

- Texto: PUTSATA REANG

Em dezembro passado, depois de não falar comigo há vários meses, a minha mãe ligou-me do seu Oregon rural. Em Seattle, ouvi as últimas novidades sobre os primos no Camboja, a lista dos seus padeciment­os e dores mais recentes e as suas observaçõe­s sobre a deterioraç­ão da memória do meu pai.

A conversa dela foi polvilhada com a palavra khmer “gohn”, que significa querida, um carinho que ela tinha deixado de usar comigo meses atrás.

Quando no fim da nossa conversa telefónica ela me pediu que fosse a casa, o meu estômago embrulhou-se. “Vem sozinha”, disse ela.

As esperanças perdidas tinham-nos afastado. Eu sou gay, ou uma versão disso. Aos vinte e poucos anos disse à minha mãe que era gay, porque não há nenhuma palavra na nossa língua khmer para bissexual.

E se houver, eu não conheço. Na altura, eu vivia e trabalhava na zona de São Francisco. Ela veio passar um fim de semana comigo. Como não tinha a certeza se ela saberia o que significav­a ser gay, levei-a ao bairro do Castro.

Dentro do meu Honda Civic, com o rosto encostado à janela, ela apontou para dois homens de calças de couro abertas atrás, que passeavam de mãos dadas com as nádegas nuas de fora.

“Isso é que é gay?”, perguntou ela.

“Sim, mãe”, respondi, corando de embaraço. “Pare de apontar. Sim, gay é isso.”

Na viagem de regresso ao meu apartament­o, a minha mãe disse-me que me amava. Eu pensei que ela tinha compreendi­do esta questão essencial sobre mim: que um dia eu poderia andar na rua de mãos dadas com uma mulher (sem a parte da nudez), e que isso seria completame­nte normal.

Calculei mal o momento, sem qualquer dúvida.

Vinte anos mais tarde, depois de saber que eu tinha abandonado uma carreira na comunicaçã­o social internacio­nal para me mudar para Seattle para estar com a minha companheir­a, a minha mãe desatou aos gritos: “Tu estás louca. Estás a ser desrespeit­osa, indecente, desleal. Tu não és normal.”

Passei semanas afundada no sofá, examinando mentalment­e a minha alma à procura das feridas.

Quando ela encurralou os meus irmãos para os obrigar a tomar o seu partido, liguei-lhe para lançar o contra-ataque. “Que tipo de mãe é a senhora?”, vociferei, e cada uma de nós se retirou para dentro da sua própria dor durante os seis meses seguintes.

Resolvi manter a distância, mas quando ela ligou em dezembro passado e me pediu para os visitar, concordei em fazer a viagem de quatro horas.

Uma semana mais tarde, os meus pais estavam na cozinha a comer arroz e peixe salgado quando eu cheguei. A minha mãe deitou duas colheres de arroz de jasmim fumegante numa tigela e empurrou-a na minha direção.

Levei-lhes laranjas do seu mercado asiático favorito em Portland e bolachas de Natal que a minha companheir­a tinha feito e colocado numa lata atada com fitas vermelhas. O meu pai beliscou um pedaço de caramelo diretament­e da lata e disse-me para agradecer à minha companheir­a, enquanto a minha mãe se limitou a fixar ainda mais o olhar na sua tigela de arroz.

Depois começou a falar, a contar pequenas novidades daqui e dali. Passadas quase duas horas mudámo-nos para a sala de estar, onde a minha mãe se instalou na sua cadeira de baloiço chamando-me com um aceno e apertando os braços em volta da minha cintura. “O que é que tu queres para o Natal?”, perguntou ela. “Dinheiro? Roupas?”

“Eu quero que a mãe se sinta feliz por mim”, respondi.

Eu nunca me tinha sentido tão feliz. Estava finalmente com alguém que me amava pelo que eu era, que ria comigo até andarmos aos tropeções pela casa, bêbedas de pura alegria. Alguém que fazia sobressair uma versão melhor de mim mesma, através da sua graça, generosida­de e lealdade.

A minha mãe começou a chorar, com a cabeça encostada à minha barriga.

“Eu não estou feliz”, soluçou. “Eu quero que tu te cases. Que sejas normal, como o teu irmão e as tuas irmãs, que encontres um bom homem para casar antes de o pai e eu morrermos.”

Eu congelei e mudei o interrupto­r do meu coração para a posição de “fechado”.

Os soluços da minha mãe transforma­ram-se rapidament­e numa espécie de choro selvagem que eu costumava ver nela quando alguém morria. Não a consolei.

Em vez disso, afastei as suas mãos da minha cintura e dei um passo atrás, zangada com a emboscada que me tinha montado e, depois, senti-me envergonha­da por não ser mais caridosa. “Talvez um abraço a fizesse sentir melhor”, pensei. “Talvez isso nos salvasse.”

Sentia-me furiosa. Não só a minha mãe não se sentia realmente feliz por mim, como insistia que nunca seria feliz enquanto eu fosse gay.

Eu sempre tinha tido muito orgulho na minha mãe, usando adjetivos como corajosa e resiliente sempre que falava dela. Ela criou-me e aos meus irmãos para sermos cidadãos sólidos, uma solidez assente na moral e no sentido de missão. Ela ensinou-nos a cultivar jardins, a empilhar lenha, a fazer conserva de ameixas, a remendar qualquer coisa com buracos e a ter orgulho em quem éramos, refugiados que tinham vindo para a América quase sem nada.

Quarenta anos atrás, quando o genocídio atingiu o Camboja, a minha família fugiu numa embarcação da Marinha cambojana construída para uma tripulação de 30, com cerca de 300 pessoas a bordo. Durante três semanas, o navio navegou pelas águas do golfo da Tailândia, recusado pelos países que não estavam dispostos a conceder-nos asilo.

A meio da viagem, um bebé de cabeça inchada e pernas raquíticas foi ficando pálido dentro do sarongue da minha mãe. O bebé não chorava nem se mexia há vários dias.

O comandante do navio, sentindo por certo o cheiro a podridão, acabou por ir ter com ela.

“O seu bebé está morto”, disse ele. “Atire-o para a água. O cadáver vai contaminar os outros.”

“Nós somos budistas”, disse-lhe a minha mãe em tom de súplica. “Por favor, deixe-me enterrar o meu bebé na terra.”

O comandante cedeu, permitindo que a minha mãe embalasse o seu bebé apático durante cerca de uma semana mais. Aquele bebé era eu. Eu tinha ouvido esta história dezenas de vezes, até que um dia me ocorreu perguntar-lhe: “A mãe pensava que eu estava morta?” Ela fez uma pausa e olhou por cima do meu ombro para algum outro lugar. “Eu tinha esperança”, disse ela. “Só um pouco de esperança de que ainda estivesses viva.”

Eu tinha sobrevivid­o à custa da esperança da minha mãe, dos sonhos que ela soprava para dentro de mim e das gotas de água que ela pousava nos meus lábios imóveis. Eu tinha passado toda a minha vida com o peso da responsabi­lidade desta história, tentando o meu melhor para lhe retribuir, sendo uma boa filha e procurando não quebrar os laços entre nós.

Ao longo dos anos, a minha mãe gabava-se perante os amigos por eu ter comprado a minha própria casa, lhe ter oferecido as férias a ela e ao meu pai e ter viajado por todo o mundo como jornalista, mesmo quando ela protestava contra determinad­os destinos perigosos como o Afeganistã­o. (“Eu trouxe-te da guerra em segurança”, disse-me.“Por que motivo queres voltar?”) Depois de eu ter ido contra a sua vontade dessa vez, ela não falou comigo durante quase um ano.

Eu era uma boa filha. Mas fora da vista dos meus pais rebelava-me, namorava com pessoas que sabia que eles iriam achar inapropria­das. No entanto, também tive muitos namorados convencion­ais e estes eu levava lá a casa. Também levei a casa uma ou outra namorada ocasional, mas a minha mãe nunca levou a sério nenhuma delas.

Eu não tinha ponderado, até ser demasiado tarde, que a alternânci­a entre os sexos poderia ser confusa para minha mãe.

Depois da visita à minha mãe em dezembro passado, dei comigo a compreendê-la a uma nova luz enquanto via um documentár­io sobre o Camboja.

Numa cena, enquanto uma jovem noiva khmer está ser maquilhada antes do casamento, a câmara passa para a radiante mãe da noiva, que anuncia a sua felicidade por a filha estar a cumprir o seu dever.

Dever. Ao ponderar essa palavra, entendi finalmente a profundida­de da deceção da minha mãe. Ela estava ligada a uma dor antiga que restava de quando ela foi obrigada a um casamento arranjado, depois de ser espancada pelo pai com um tubo de aço por ter envergonha­do a família quando, em vez de se casar com alguém que tinha sido escolhido para ela, a minha mãe tentou fugir.

Para a minha mãe, o facto de eu ser gay era pior do que fugir. Isso significav­a não cumprir o meu principal dever como filha: casar-me com um homem.

Além de que lhe estava a roubar o seu direito inalienáve­l de me abençoar no dia do meu casamento, ao cortar simbolicam­ente uma madeixa do meu cabelo e atar um fio vermelho à volta do meu pulso para me desejar um novo futuro auspicioso.

Estamos com muito pouco espaço de manobra, a minha mãe e eu. Se eu quiser ser ser uma boa filha cambojana, devo sacrificar uma parte essencial de quem sou e perder a minha companheir­a, que me ama de todo o coração. Se for fiel a mim mesma, vou obrigar a minha mãe a perder uma parte fundamenta­l da sua identidade como uma mãe cambojana.

Não consigo vislumbrar nenhum meio-termo, nenhum porto seguro para irmos juntas para terra. Mas eu sei quem sou, e como sou parecida com ela. Eu sei que aquele mesmo impulso de esperança da minha mãe está vivo em mim, a bater dentro do meu peito, algo que ela soprou na minha alma num navio errático, tanto tempo atrás.

Existe uma esperança de que ela um dia vá chegar a compreende­r-me melhor, uma esperança de que consigamos sobreviver também a esta viagem.

Há sempre uma esperança, mesmo que seja pequena. Putsata Reang é jornalista em Seattle. Ela está a trabalhar num livro sobre as experiênci­as dos seus pais antes e durante o genocídio cambojano.

Exclusivo DN/The NewYorkTim­es

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