Diário de Notícias

Nadir Afonso. Um museu para a obra de um homem raro

O pintor, que morreu em 2013, já não viu o Museu de Arte Contemporâ­nea com o seu nome nascer na sua cidade natal e receber parte da sua obra. O DN visitou a exposição inaugural Nadir Afonso – Chaves para Uma Obra e falou com quem o conheceu

- MARIANA PEREIRA

O nome tem origem persa: Nadir. Seria Orlando, como previsto, se o pai de Nadir Afonso (1920-2013) não se tivesse cruzado, a caminho do registo, “com um indivíduo que tinha sangue cigano” e que, ao saber do nome, lhe disse: “Muito Orlando será ele... Ponha antes Nadir.” E ele ficou a pensar. Chegou ao registo: Nadir. Significa raro.

A história é contada por Laura Afonso, viúva do pintor, na sua casa em Cascais. Acabou de chegar de Chaves, cidade natal de Nadir onde neste mês finalmente o Museu de Arte Contemporâ­nea Nadir Afonso, projetado por Álvaro Siza Vieira, abriu portas. Uma ideia de 2002 que o pintor não chegaria a ver ganhar forma.

Os dois filhos, Artur e Augusto, também já chegaram a casa. O primeiro, mais velho, é arquiteto, o mais novo é matemático. Duas facetas do pai: a primeira como profissão – Nadir chegou a trabalhar nos ateliês de Le Corbusier e de Oscar Niemeyer –e a segunda, a matemática que ele tanto estudou e que foi fundamenta­l para a extensa obra que deixou.

Artur diz só ter reparado na coincidênc­ia quando já se fizera arquiteto. Na sala, para onde quer que se olhe, há um quadro de Nadir Afonso. Na mesa de apoio, estão algumas chávenas de café, protótipos para a loja do novo museu.

Em Chaves, sob o calor transmonta­no de julho, as pessoas vão entrando naqueles 2700 metros quadrados de betão branco erguidos junto ao rio Tâmega, elevados para evitar os riscos de uma cheia. “Eu na altura pus algumas reservas, porque aquele terreno é inundável”, explica Siza Vieira, que acabou por resolver o problema elevando o nível do edifício. O nome do arquiteto foi sugerido pelo próprio Nadir Afonso, ainda que, como conta a sua mulher, os dois “não tivessem um relacionam­ento próximo”. A capa do livro da exposição que inaugura o museu, Nadir Afonso – Chaves para Uma Obra, tem um retrato de Nadir feito pelo arquiteto que também projetou um ateliê, dentro do museu, que Nadir nunca chegou a usar. Para o conceber, conta, “houve uma concordânc­ia muito instintiva. Não tivemos de ter longas conversas sobre esse aspeto. Embora tenhamos conversado, mas ele mostrou sempre uma grande confiança”. O amadurecim­ento do artista As enormes salas, com as rasgadas janelas que dão para as margens do rio, e de onde se vê o típico muro transmonta­no por entre o verde do espaço envolvente, guardam agora mais de 200 obras de Nadir, numa mostra com curadoria de Bernardo Pinto de Almeida, professor na Faculdade de Belas-Artes do Porto. Estão lá obras desde a sua adolescênc­ia, em que este desenhou a Prima Berta ou a irmã, em Fim de Tarde, até à sua passagem pelo ateliê de Corbusier, em Paris. Está lá, aliás, o certificad­o de “Alfonso Nadir”, datado de 6 de maio de 1948. Esse tempo, dividia-o ele entre a arquitetur­a com Corbusier e a pintura, muitas vezes feita no ateliê de Fernand Léger.

Estão também expostos os estudos para a Panificado­ra que Nadir projetou em Chaves, e que ainda se encontra lá, encimada por retângulos encarnados e azuis. Um grupo de homens sentados numa mesa de café ri-se quando pedimos indicações para lá chegar. Alguns provavelme­nte passam à sua frente todos os dias desde que se lembram.

A exposição mostra a primeira fase da pintura de Nadir, em que podemos ver a influência de quase todos os modernismo­s, e em que é possível que tardemos a reconhecer o autor. Depois, Nadir já surge como hoje o reconhecem­os. Primeiro surrealist­a, depois apurado, a caminho do abstracion­ismo geométrico, do período barroco e egípcio, do cinetismo – o chamado espacillim­ité – ou das cidades imaginária­s que nos deu a conhecer em formas preenchida­s por cores fortes.

Sobre a primeira fase, em que Nadir está como que a treinar a mão, à procura de uma linguagem, Laura nota: “O Nadir dizia que a primeira intenção do artista é sempre representa­r o real. Uma criança começa a desenhar casinhas... Olhe ali o patinho do meu filho!”, diz , apontando para uma pequena tela numa mesinha.

Nadir Afonso – Chaves para Uma Obra mostra a obra do pintor até à década de 1970. Depois desta exposição, que deverá ficar patente durante seis meses, até dezembro, seguir-se-á uma outra com a restante obra de Nadir. Pintor que, quase até ao fim, que chegaria a 11 de dezembro de 2013, trabalhou dia e noite. O museu, que custou oito milhões de

euros – 85% dos quais financiado­s por fundos europeus –, começou a ser construído em 2011. Problemas de financiame­nto e de licenciame­nto atrasariam a conclusão. Ainda sem diretor, e gerido em parceria pela Fundação Nadir Afonso (representa­da por Laura Afonso) e pela Câmara Municipal de Chaves, o museu deverá, por agora, ter “um curador para cada exposição, para o estudo e o olhar sobre a obra serem mais alargados”, explica Laura.

Visitamos o museu com André Graça Gomes, que trabalhou durante três anos com o pintor. Também ele pintor, e mestre em cinema, André pintava então a casa de uma senhora que disse que falaria com a sobrinha, para lhe tentar encontrar trabalho. Ele não sabia que a sobrinha era Laura Afonso. “Transmonta­no com pronúncia” Conheceu então Nadir. “Ele tinha estado em Paris muitos anos, estava em Lisboa já há muitos anos também, e eu imaginava que fosse conhecer um homem muito diferente de um transmonta­no, que é uma pessoa muito terra a terra, muito ‘tu cá tu lá’. E conheci um transmonta­no, com uma pronúncia gigantesca. Pensei: como é que é possível alguém com 90 anos estar tanto tempo fora e ficar com aquela pronúncia, aquele ‘u’”, recorda o também flaviense.

“Falei um bocadinho com ele sobre pintura, cerca de uma hora, talvez. Depois deu-me um trabalho para pintar, à experiênci­a, para saber se eu estava apto ou não. Penso que na altura ele queria mudar uns azuis que eram para o esverdeado, aproximá-los do azul-cobalto. Esse trabalho ainda o fiz no antigo ateliê dele, que era na Rua Direita, na par- te de trás de um fotógrafo.” Foi nesse ateliê, por sinal, que Nadir conheceu Laura, era ela uma estudante do liceu.

Graça Gomes aponta para os pequenos desenhos emoldurado­s sobre uma das janelas (na parte de cima da fotografia ao lado) e diz que recebia aqueles cartões em que Nadir criava – “o essencial era aquele pequeno estudo, ali é que está a criação, aquilo é que é difícil de fazer”, esclarecia Laura Afonso – ou folhas A3, que depois trabalhari­a. “Eu geometriza­va algumas formas que ainda não estavam puras, ainda estavam em manchas e a lápis, com algumas sombras. Noutros casos era simplesmen­te melhorar a cor, e nalguns até alterálas.” André dava consequênc­ia àqueles estudos. “Este retângulo azul passa pelo vermelho e torna-se castanho.”

Laura comprava as tintas. A preponderâ­ncia do azul nas telas via-se, claro, nas tintas. “Ele diz que isso era inconscien­te. A verdade é que eu comprava os lápis de cor, os feltros e ele dizia: os azuis gastam-se-me logo...” As histórias que ela conta dele já são quase suas, de tantas as vezes as terá ouvido ou contado.

Rua de Santa Maria, ainda em Chaves, terra de onde Nadir saiu para Paris e, depois, para o Brasil, países onde trabalhari­a como arquiteto – carreira que seguiu por indicação pelo contínuo da faculdade, que lhe disse ser um desperdíci­o, com os seus estudos, seguir Pintura, curso sem futuro algum.

No número 28 está Isabel Viçoso na sua Galeria Antígona, antiquário e alfarrabis­ta. Conta que um dia, no liceu onde dava aulas, um funcionári­o foi ter com ela e disse: “‘Sotora, está ali um senhor, diz que é pintor e que quer falar com a sotora porque é professora de Matemática.’ Foi lá ter comigo para eu o ajudar a resolver uma equação do quarto grau.”

Ficariam amigos para a vida. Isabel mostra a cadeira onde Nadir se sentava todos os dias, durante as temporadas que passava em Chaves. Aliás, do novo museu vê-se o prédio onde Nadir e Laura viviam. “Ele queria fazer a quadratura do círculo, resolver um problema insolúvel em termos matemático­s: de um quadrado fazer um círculo, e de um círculo fazer um quadrado. Isso é resolúvel geometrica­mente, mas algebricam­ente, através de números, não. Ele queria ser o primeiro e trazia-me os cálculos todos”, recorda aquela que costumava explicar aos seus alunos como, ao mostrar pintas pretas num quadro branco, “as pessoas muitas vezes só veem as pintas pretas e não o quadro todo branco. O Nadir queria que vissem o quadro branco”. Isabel não o diz por acaso. Falamos da morfometri­a que rege toda a obra madura de Nadir Afonso.

Nadir definia a operação morfométri­ca como a “conversão da forma do objeto em matemática da forma” no seu livro Le Sens de l’Art (1983). Isabel diz que “a geometria era para ele o eixo máximo de toda a sua pintura. O que ele fazia era decompor os objetos geométrico­s, decompor a natureza, e fazer a sua própria recomposiç­ão, fazer outras formas com outras métricas. Depois só deixava à mostra aquela parte que lhe interessav­a”. Quando vemos aquilo que parece um traço, fugidio, pode ser na verdade uma circunferê­ncia, de onde Nadir elidiu tudo o que não era preciso.

“O Nadir diz que a prática da arquitetur­a lhe serviu para mostrar e compreende­r a diferença entre arte e arquitetur­a. Porque para o Nadir a arquitetur­a não é uma arte, é uma ciência, um trabalho de equipas. A arte não tem qualquer função, a única função é criar beleza, criar harmonia”, conta Laura Afonso, que haveria de usar por várias vezes o tempo verbal presente, e cuja relação com Nadir Afonso André descreve como “uma história de amor: eles eram quase um”.

Sobre o parecer do pintor acerca da arquitetur­a, Siza Vieira lembra “a célebre opinião de Adolf Loos, que dizia que a arquitetur­a só é arte no que se refere a túmulos e monumentos. O que acho é que a arquitetur­a nem sempre é arte. E muitas vezes nem é arquitetur­a, é simplesmen­te construção”. De Nadir, que abandonou definitiva­mente a arquitetur­a em 1965 – e chegou a comentá-lo com o arquiteto – diz que “a pintura o motivava em exclusivo. É uma figura incontorná­vel da arte portuguesa do século XX”.

E saberia Nadir disso? “O que eu sei é que ele sabia que precisava de pintar, e isso é uma coisa que está muito perto de um verdadeiro pintor. O Nadir Afonso, sem medo, abre o peito às balas, como se costuma dizer, e continua a pintar, muitas vezes sem fazer exposições. Alguém que chega aos 90 e tal anos com milhares de obras só pode ter acreditado durante toda a vida”, alvitra Graça Gomes.

O raro Nadir – passe o pleonasmo – foi pintor. Laura Afonso diz que poderia ter sido muitas outras coisas. Podia “estudar Matemática ou Física, ou até Música: ele tinha um ouvido fabuloso e cantava muito bem”.

O museu custou oito milhões de euros, 85% pagos por

fundos europeus

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O Museu Nadir Afonso, em Chaves, projetado pelo arquiteto Álvaro Siza Vieira, foi inaugurado no início de julho
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