Diário de Notícias

Como representa­mos a violência?

- JOÃO LOPES Crítico

Primeiro, julguei que era um delírio meu face à vertigem de muitas imagens recentes. A pouco e pouco, verifiquei que era uma coincidênc­ia. Mais do que isso, um padrão de comportame­nto: nas mais variadas cadeias televisiva­s de todo o mundo, alguns comentador­es de acontecime­ntos horríveis (o ataque terrorista em Nice, os tiroteios na Turquia, etc.) vão pontuando as suas intervençõ­es com analogias mais ou menos simbólicas, derivações mais ou menos irónicas, por vezes com risinhos mais ou menos sarcástico­s.

Ainda e sempre surge a pergunta que quase ninguém quer formular: como representa­mos a violência? E digo “quase ninguém” porque, de facto, não estou a discutir a profilaxia ingénua da bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã. Num tempo em que ninguém diz nada sobre o horror moral e quotidiano do Big Brother e seus derivados (veja-se Love on Top), triunfou o recalcamen­to de qualquer análise das imagens que nos chegam, instantane­amente, de todos os recantos do planeta. Por exemplo: que acontece quando, num só dia, somos confrontad­os centenas de vezes com os breves segundos de imagens mais ou menos turbulenta­s, registadas no telemóvel de um qualquer cidadão anónimo? Ou ainda, e sobretudo: porque é que tais imagens adquiriram o estatuto de matéria, prova e caução de trabalho jornalísti­co?

Infelizmen­te, o possível espaço de reflexão sobre tão delicadas questões tende a ser bloqueado por uma reação corporativ­a que não ajuda ninguém. A sua pergunta mais frequente, implícita ou explícita, é esta: “... mas então as televisões são culpadas pelos atos de violência?”.

Escusado será dizer que seguir por esse caminho só pode minimizar a inteligênc­ia de todos os envolvidos. Enquanto nos perdemos nos labirintos da “culpa”, evitamos lidar com a questão central. A saber: a responsabi­lidade de produzir e difundir imagens.

O tema é tanto mais atual quanto passámos a viver num mundo saturado de hipóteses de acesso a qualquer imagem, em qualquer momento, em qualquer lugar. Há muito que o ecrã de cinema deixou de ser o lugar sagrado de acesso à pluralidad­e imensa das imagens (que não se podiam ver em nenhum outro contexto). Em boa verdade, passámos a viver num universo audiovisua­l em que, para o melhor e para o pior, a proliferaç­ão de ecrãs é a regra, não a exceção (dos computador­es aos sistemas de segurança, passando, claro, pelos telemóveis).

Lembro-me de 2001: Odisseia no Espaço, o filme de Stanley Kubrick lançado em 1968. Na viagem dos seus astronauta­s, na sua relação com o inquietant­e computador Hal 9000, estava já figurada essa perversa transfigur­ação da realidade através dos ecrãs. E não deixa de ser desconcert­ante que o génio premonitór­io de alguns filmes pese cada vez menos no pensamento sobre os nossos modos de vida. Entre outras conclusões, isso obriganos a reconhecer a solidão contemporâ­nea do trabalho crítico sobre os filmes.

Vivemos num mundo saturado de ecrãs

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2001, de Stanley Kubrick: memórias de 1968...
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