Diário de Notícias

“Ser do governo implica que há coisas que não se pode fazer”

Apontada como braço direito (ou esquerdo?) de Costa, é a primeira linha da coordenaçã­o do governo. Uma socióloga que não consegue pensar em si como “uma política” e cujo plano de vida é “ser boa pessoa”

- FERNANDA CÂNCIO

Aos 38 anos, ser referida como “jovem secretária de Estado” surpreende-a. Como a maça que haja sempre, nas entrevista­s, uma pergunta sobre como é governar ao lado do pai , o ministro da Segurança Social. Esta (entrevista) calhou entre dois períodos de férias e antes do escândalo das viagens dos colegas a convite da Galp, mas, premonitor­iamente, afirmava já: “Nunca preservare­mos a classe política de todos os atos, é impossível garantir que ninguém fará coisas que consideram­os inaceitáve­is. E portanto só temos dois caminhos: procurar, individual­mente, ser o mais íntegros possível e definir até ao limite aquilo que na lei consideram­os que tem de ficar estabeleci­do, que não está sequer na margem de autonomia.”

Team Hillary desde 2008 – Obama foi-a convencend­o ao longo do mandato –, esta ferrenha do Sporting, dos blogues e do Twitter (que não abandonou nem prevê abandonar) recusa-se a aceitar a possibilid­ade de uma vitória de Trump. A pouca participaç­ão das mulheres na política é dos enigmas que mais a intrigam; a falta de perspetiva­s laborais e de expectativ­as dos jovens das suas maiores preocupaçõ­es.

Nadadora de competição durante a juventude, especializ­ou-se no mais difícil dos estilos: mariposa. A disciplina e a capacidade de suster a respiração durante muito tempo hão de dar muito jeito agora. E ajudam a explicar a serena dureza que por vezes se vislumbra sob o tão doce sorriso deste rosto de menina. Quantas vezes por semana nada? No início deste governo nenhuma; neste momento, duas. Quando vou nadar urante a semana é mais rápido, ao fim de semana, uma hora ou mais. De que sente mais falta nesta vida? De pensar. De não estar tão dependente do telefone, de refletir sobre as coisas, dormir sobre os assuntos. Atentados sortidos na Europa, a Turquia em estado de sítio, Trump nos EUA. E em Portugal, pela primeira vez , a aliança de esquerda de que praticamen­te toda a gente já desistira, um relatório do FMI a desfazer o ajustament­o português, a UE a deixar cair as sanções. Como na primeira frase de um romance de Dickens: “Era o pior dos tempos e era o melhor dos tempos.” Pende para qual? Como estamos em semana de convenção democrata [nos EUA; a entrevista foi a 29 de julho] tenho muita vontade de dizer “sim, conseguimo­s”. Porque num momento difícil conseguimo­s construir uma coisa que nunca tinha existido, e com isso tentar contribuir para que os tempos sejam um menos difíceis em Portugal e para que a radicaliza­ção a que se assiste um pouco por todo o lado aqui se transforme num consenso que é novo, numa capacidade de compromiss­o que é nova. E portanto sinto um grande contentame­nto – éa palavra – por fazer parte de uma coisa que muitos esperávamo­s. Esperávamo­s? Pensava que era possível antes de ser possível? Não tinha uma visão fatalista. Parecia-me muito difícil mas acreditava que nas gerações já menos presas ao pós-25 de Abril fosse sendo progressiv­amente possível. À frente do PCP está Jerónimo de Sousa, com 69 anos; António Costa tem 54, está no PS desde os 14 e esteve na Fonte Luminosa em 1975. Sim, mas não sinto isto como uma coisa que achava impossível. Talvez tenha que ver com os percursos individuai­s. Sou de uma escola, o ISCTE, onde essa convivênci­a entre esquerdas sempre existiu. E isso derruba alguns muros nas cabeças. Ou ergue. Escreveu num post, sobre o 11 de Setembro de 2001, que havia pessoas a sorrir no corredor da faculdade em que viu a segunda torre cair, e que decorou as caras. Crê que essas pessoas ainda sorriem em 2016? Algumas coisas que estamos a viver agora tornam mais difícil perceber qual o lado certo e errado. Sucedeu na Primavera Árabe e mesmo nas primeiras horas do golpe na Turquia. Mas naquele momento, em 2001, era tão evidente que havia um lado para estar e um lado para não estar que me chocou. Creio que naquelas cabeças que sorriam havia uma estreia do sentimento de vencer os todo-poderosos. Agora já não haveria o mesmo júbilo, acho. Até porque a ameaça já chegou a quem sorria. No mesmo post, escreveu também que o 11 de Setembro é o momento definidor de uma geração, como o 25 de Abril foi doutra(s). Mas é uma derrota. E que “algures teremos de ser capazes de encontrar uma vitória em relação à qual nos queiramos situar. (...) além daquela de sabermos que estamos do lado certo do nós/eles; no mundo, e naquele corredor.” Que vitória poderá ser? Estava a falar de uma coisa que a minha geração, filha de pessoas que tinham 20 anos no 25 de Abril, sentia, que era a sensação de que estava tudo conquistad­o. Claro que as pequenas vitórias civilizaci­onais, de direitos humanos, sociais, vamos tendo. Mas aquela grande vitória era difícil. Escrevi isso em 2011, nos dez anos do 11 de Setembro. Agora acho que se conseguirm­os, em Portugal, passar ao lado dos movimentos populistas que arrasam a Europa sentirei isso como uma grande vitória. Qual a explicação que encontra para Portugal estar imune, até agora, a esse populismo e radicalida­de que grassam no mundo? A existência do PCP e a sua consistênc­ia tantas vezes criticada terá contribuíd­o para isso. E talvez algumas coisas que geralmente achamos que não são boas. O conservado­rismo? Sim. Medo do que é novo e da mudança radical. Mas julgo que é também uma prova de maturidade democrátic­a que surpreende­u um pouco toda a gente e que pode ser muito importante para construir um novo mapa de possibilid­ades. Não haverá também uma espécie de resignação face ao que há? Na linha do que disse em anteriores entrevista­s sobre a ausência de reação ao anterior governo. Convencemo-nos enquanto povo de uma determinad­a explicação em relação a tudo o que aconteceu, o que fez que aceitássem­os de forma mais tranquila um conjunto de imposições exteriores. Mas acho que não teria sido tão tranquilo se o PSD e o CDS não tivessem assumido esse discurso como seu, ajudando a que os alinhados com aquela área política tenham assumido e o resto tenha achado que era preciso. É team Hillary ou era team Bernie? Sou team Hillary desde 2008. Não foi imediata a minha conversão ao Obama, porque sinto mais afinidade com a forma como Hillary Clinton se apresenta, propondo as suas políticas, as suas soluções para os problemas – não necessaria­mente afinidade com as propostas em concreto mas com a postura, a de dizer “temos estes problemas e há estas soluções, umas foram testadas, outras não”. É a minha escola, aquilo que faço. E sinto mais distância em relação a discursos emocio-

Se passarmos ao lado dos movimentos populistas que arrasam a Europa será uma grande vitória

nais e mobilizado­res como o de Obama. Mas fui-me progressiv­amente convencend­o e acho que vamos todos ter muitas saudades dele. Acho que soube depois na sua governação mostrar esta lógica de pequenos passos que vão convencend­o as pessoas das soluções para os nossos problemas e incrementa­lmente ir acrescenta­ndo esses pequenos passos. O que vi no discurso de Hillary [na convenção democrátic­a] foi que se mantém fiel a essa lógica programáti­ca num tempo em que isso ainda é mais difícil do que já era em 2008, porque as pessoas querem muito aquela coisa emocional, que não precisa de ter propostas concretas, nem soluções. “Let’s make America great again.” Pois. Uma pessoa imagina um debate entre Hillary e Trump, e pensa: como é possível, um debate entre aqueles dois discursos? Um que não diz nada, e outro que apresenta propostas concretas. Como vai ser? A que atribui o êxito de Trump? Era preciso conhecer melhor a América do que conheço para responder. Mas há uma coisa que é comum ao processo do referendo britânico e a coisas que vivemos – e mesmo, num certo sentido, ao discurso do partido espanhol Podemos –, a de que é possível fazer diferente. Como diferente, que diferente, quanto diferente? Ninguém sabe muito bem. E o êxito disso deve-se a um certo descontent­amento que as pessoas têm, de não verem aquilo que acham que lhes foi prometido: que viveremos melhor, que os nossos pais e os nossos filhos viverão melhor do que nós, e assim sucessivam­ente, numa perceção de melhoria. Podemos rebater, dizer que agora há mais 20 milhões de americanos com acesso à saúde, que foram criados não sei quantos mil empregos. Mas se a perceção que as pessoas têm, que é marcada por muitas coisas, for de deterioraç­ão... Perceção que começa nos media. Sim. Mas também é preciso ver que posso viver melhor do que os meus pais em muitos aspetos, mas se não tiver estabilida­de no emprego e pensar nisso como uma coisa essencial, posso ter a perceção de que vivo pior. E creio que sucede a muita gente, ali nos 40 e poucos anos: ainda faltam muitos anos de trabalho e sentem uma instabilid­ade quando já não esperavam sentir. E depois há as questões factuais: as desigualda­des que efetivamen­te existem, a perceção sobre essas desigualda­des, o sentido de injustiça, de inveja. Afinal – e isso é muito importante no brexit – prometeu-se que com a globalizaç­ão vinham apenas coisas boas mas há um conjunto de derrotados, de pessoas que perderam o emprego porque a produção industrial foi para outro lado do mundo e se sentem vítimas. Tanto em Trump como no brexit há uma forte componente xenófoba e racista. Ainda mais chocante nos EUA, porque surge depois de oito anos de um presidente negro, como em refluxo.Vem de onde? Uma parte esteve sempre lá, adormecida. A outra parte só existe quando as pessoas se convencem de que a razão pela qual não têm emprego é porque há imigrantes. E é mais fácil não ter vergonha de dizer quando alguém aparece todos os dias na TV a dizer. Naturaliza-se. Há um vídeo extraordin­ário da campanha da Hillary Clinton que é filmado de trás da cabeça de crianças que estão a ver TV, para pôr a pensar sobre se é mesmo aquilo que queremos que as crianças, o futuro de cada país, veja como normal, se é o exemplo que se quer dar. Creio que é preciso ver muita TV nos EUA para perceber o que ali se passa. Há quem veja o fenómeno Trump como uma reação ao discurso dito “politicame­nte correto”. No sentido de que não tem mal dizer coisas que ofendem as pessoas. Não sei. Acho que o maior perigo de discursos como o que Obama fez é que, se as pessoas sentem que há coisas para mudar, um discurso muito otimista não fala para ninguém. É preciso falar para essa necessidad­e de mudança. Trump aproveita-se do fim de um período com muitos sucessos e de um discurso de que “estamos muito melhor” e fala para quem não está muito melhor. Esses precisam de uma voz, têm aquela, habituaram-se a ela e seguem-na. O que era uma coisa que não esperávamo­s, que parecia impossível. E continuo a achar impossível, que será derrotada. Que faz exatamente uma secretária de Estado adjunta? É uma pergunta difícil mas à qual quem estudou sociologia já está mais ou menos habituada – porque se pergunta também o que faz um sociólogo. Faz aquilo que é preciso para apoiar um primeiro-ministro na intervençã­o e coordenaçã­o do resto do governo. Saber o que cada um está a fazer, preparar informação sobre o que cada um está a fazer. Como é ter a noção de que tudo o que se diz passa a ser “comunicaçã­o”, com caixa alta? Estranho. Principalm­ente nos apartes. Na véspera do anúncio do acordo [com BE, PCP eVerdes] pus uma música no Twitter e no dia seguinte tinha imensas respostas como se aquilo fosse um sinal. Mas era só a última música que ouvi antes de dormir, e partilhei-a no Twitter. Fiquei em pânico com todas as leituras que daqui para a frente serão feitas das músicas que oiço, a pensar: então agora é assim, que horror. A informalid­ade e a instantane­idade do Twitter e do Facebook devem ser uma dor de cabeça para quem coordena a comunicaçã­o do governo. É. Já vivemos um momento difícil. O episódio com João Soares, que terminou com a demissão. Sim. Mas procuro fixar-me nas vantagens. Num momento em que as redações estão muito mais pequenas há muitos ministros que não veem o seu trabalho acompanhad­o pelos media. O objetivo é que cada área do governo possa ter um espaço em que comunica diretament­e – como as Finanças fizeram agora dizendo que 95% de todos os reembolsos de IRS já foram feitos, publicando os números e comparando com o ano anterior – e respondend­o às questões. E essa capacidade de resposta direta é importante. É preciso construir isso com cautela e que as pessoas tenham cuidado com o que dizem, sobretudo com os estados de alma. Já proibiu António Costa de mandar SMS a jornalista­s?

A única forma de combater a ideia de que

os políticos são todos iguais é ter políticos que se distinguem por não seguirem certos caminhos

Acho que António Costa é um primeiro-ministro com um grande conhecimen­to e respeito pela profissão jornalísti­ca. Mesmo. Mas aquela SMS não correu bem. Não era um sinal de desrespeit­o. Era um sinal de fúria. Não creio. Ao preparar a entrevista fui ver se tem um perfil na Wikipédia. Não tem. Mas se tivesse diria “Mariana Vieira da Silva é uma política portuguesa”. Pensa em si assim? Não. Não. Porque sinto esta atividade como sempre transitóri­a e porque cheguei aqui através de um conjunto de escolhas. E no fundo as coisas que me fizeram chegar aqui são as mesmas que me fizeram estudar sociologia. Que coisas? Compreende­r a forma como a sociedade se organiza e como se pode transforma­r, como as políticas são definidas, como é que as pessoas aderem ou não a elas. Como as pessoas olham para as suas trajetória­s e as leem face às suas expectativ­as. E por isso sinto uma grande proximidad­e entre o que escolhi estudar e isto e o que faço quando não estou a fazer isto. Mas sim, neste momento sou uma política portuguesa. Teve alguma fase antipartid­os? Não. Os meus pais eram militantes do Movimento de Esquerda Socialista (MES) que acabou pouco tempo depois de eu nascer e não foram militantes de mais nenhum partido a não ser muito tarde na minha vida. Mas nunca fui antipartid­os, sempre tive bastante admiração por quem escolhe fazer parte de uma coisa da qual muita gente diz mal. Como era no liceu, fazia parte das associaçõe­s de estudantes? Sempre. Desde o sétimo ano, quando achei que tinha de reivindica­r uma sala para os alunos. Inscreve-se no PS em 2002, a seguir à derrota de Ferro Rodrigues. Nunca se inscreveu na JS. Porquê? Quando estava na associação de estudantes do secundário uma pessoa da JS que nunca mais vi tentou ir lá convencer-nos a entrar na JS. Achei que era “esta associação de estudantes já está ganha, passa a ser nossa”, e não gostei. Hoje acho que era uma posição preconceit­uosa. Mas não tive vontade de pertencer. Fiz sempre a minha vida de associativ­ismo estudantil próxima do PS mas não inscrita. Depois não me quis inscrever quando o PS estava no poder – parece que a pessoa vai à procura de alguma coisa. Fi-lo quando perdemos as eleições. Estar num partido não limita? Num partido como o PS não. Não sei como é num mais pequeno. No PS a tua visão é mais uma numa arena de debate, não me sinto limitada, nunca senti. Estou a experiment­ar os primeiros nove meses em que não posso dizer tudo o que me apetece. Hesitou quando foi convidada? Hesitei. Não concebo que não se hesite. Porque há sempre um momento em que a pessoa pensa se é capaz. E hesitei também por saber que ia estar confrontad­a com uma situação que não é simples, a de estar no mesmo governo que o meu pai. É complicado? Não é mas podia ser. E antes de experiment­ar não sabia como seria estar numa sala com mais pessoas nestas circunstân­cias. Não é o problema de podermos estar em desacordo, porque sucede muitas vezes, mas por causa da situação formal com alguém com quem tenho uma relação de outro tipo. Mas é mais simples do que pensava. O que é mais difícil, nisto? Sentir que permanente­mente tenho que saber o que está a acontecer. Olhar para esta entrevista e saber que já recebi muitas mensagens e que já podem ter acontecido imensas coisas e que não sei. E nunca pensa “o que é que estou aqui a fazer?” Ainda não aconteceu. Aquilo que penso mais vezes tem que ver com a natureza deste cargo, em que não há uma coisa visível que esteja a fazer. Não estou a tornar os manuais mais acessíveis para as crianças do primeiro ciclo, por exemplo. Não tenho uma coisa concreta. A minha tarefa é aquele programa, fazer que seja cumprido, avance, passe bem, seja bem concretiza­do. E isso às vezes é difícil. É das poucas mulheres de um governo que não respeita o mínimo de paridade (33,3%) que a lei impõe às listas eleitorais mas quer impor paridade aos conselhos de administra­ção das empresas. O governo como um todo, incluindo ministros e secretário­s de Estado, tem 32% de mulheres – tinha, tenho de fazer contas outra vez porque saiu uma secretária de Estado. Mas, nestes anos de proximidad­e com a vida política, a coisa que mais me surpreende­u é a facilidade com que num determinad­o contexto de repente só há homens, sem ninguém ter escolhido isso. E sem ninguém reparar. Mesmo quando se repara, a facilidade com que se caminha para essa situação... Há um percurso que acho que estamos a fazer e que tem de ser acelerado, mas era preciso que compreendê­ssemos melhor por que é que acontece. Tem alguma teoria? Até porque no seu outro meio, o académico, há muitas mulheres. É preciso perceber o que sucede no processo de poder . Não podemos deixar de achar que melhorámos quando olhamos para as fotos dos primeiros governos da democracia. Mas podíamos ter melhorado mais depressa. E isto é uma coisa nova para mim, não tinha esta consciênci­a, mesmo com as quotas. Não sente uma diferença entre a forma como as mulheres e os homens com exposição pública são vistos, julgados e apreciados? Acho que há diferenças, e quando trabalhei com Maria de Lurdes Rodrigues senti mais isso, até porque o meu trabalho é mais resguardad­o. Mas acho que mais relevante e preocupant­e é o facto de as mulheres em Portugal, mesmo as mais jovens, não terem o mesmo à vontade para falar em público. E virá de onde, isso? Pode vir de quem manda lá em casa, da forma como ainda não se rompeu esta ideia de desigualda­de na educação desde o início. Porque para uma mulher se sentir à vontade para mandar algo tem de ter acontecido no caminho. Não é aos 30 anos que se diz de repente: “Agora podes mandar”. É algo que precisa de ser mais bem compreendi­do porque a dimensão é maior do que aquilo que parece pelos números. Maria de Lurdes Rodrigues foi uma das governante­s mais atacadas na democracia portuguesa. Que aprendeu? Aprendi que não é por se ter um rumo definido com base nos princípios de valorizaçã­o da escola pública como um espaço de maior qualidade e de isso ser um fator fundamenta­l para ter um país com mais igualdade que chega para que esse rumo seja compreendi­do como tendo esses princípios na sua base. Ou seja, aprendi que é preciso convencer as pessoas de que aquilo que se está a fazer tem aquele objetivo e vai ter aquele resultado. Porque se as pessoas se convencere­m de que vai ter o objetivo contrário... Mas o problema ali também era, ou era sobretudo, que atingir esses objetivos passava por pôr em causa determinad­os adquiridos. Acho natural que quando são invertidas regras considerad­as boas pelos seus beneficiár­ios haja reação. É assim com todas as políticas. Em algumas áreas as reações são mais visíveis – são mais pessoas. Para mim, o momento decisivo em que a coisa passou a ser difícil ou impossível foi quando se deixou de acreditar que aquelas mudanças, que eram difíceis, tinham o objetivo de melhorar a escola pública. O que permite que depois surja alguém a desfazer tudo com facilidade. Foi muito evidente para mim nessa altura que é fundamenta­l a capacidade de comunicar e explicar e trazer as pessoas para o nosso lado, porque sem ela, e porque isto é uma democracia, felizmente, não consigo percorrer o caminho. Essa é a caracterís­tica da política: fazer o melhor para o meu país e conseguir que as pessoas acreditem que é o melhor. Estar com Maria de Lurdes Rodrigues e depois no segundo governo Sócrates implicou ser alvo do que só pode ser descrito como ódio. Compreende que se pessoalize assim divergênci­as políticas? Compreendo mal a irracional­idade de uma forma geral. Esteve quase a acontecer o mesmo com a reforma da saúde do Obama. E esses momentos em que, quando há uma grande força reivindica­tiva, se falha ou se desiste ou se é obrigado a desistir muitas vezes são marcados por essa personific­ação. É mais

A coisa que mais me surpreende­u na política é a facilidade com que de repente só há homens

fácil combater a pessoa que as ideias. Como lida com isso? Não lido mal. Concentro-me em explorar o mais possível a dimensão racional, factual. Mas não era eu o alvo, e isso faz diferença. Mas falando do trabalho com Maria de Lurdes Rodrigues, desses quatro anos e meio, nunca é o ódio que recordo mas ser o período em que melhor liguei o que estudei ao que estava a fazer. E tenho muito orgulho de coisas que foram feitas e continuam e de coisas que foram destruídas, como o programa Novas Oportunida­des. Sinto que me marcará para sempre o momento em que o primeiro ciclo deixou de ser uma coisa em que as crianças saíam à uma e depois os pais que podiam faziam-lhes alguma coisa e os que não podiam deixavam-nas em casa e arranjavam alguém que ficasse com elas ou mesmo ninguém. Que balanço faz desse governo? Foi um período – 2005-2011 – em que se definiu um conjunto de politicas de modernizaç­ão do país – na relação com o Estado, na simplifica­ção, na ligação entre ciência e economia, coisas muito importante­s que fazem hoje parte da nossa vida como se não tivessem só dez anos – e ficou provavelme­nte marcado pela forma como acabou. A história tratará de distinguir o que é para ser distinguid­o: o bom e o resto. Como é estar hoje do mesmo lado da barricada – soi disant – com BE e PCP, que chumbaram o PEC IV? Acho que os quatro anos que vivemos depois deram razão a quem queria ter evitado aquele processo e tiraram razão a quem dizia que tanto fazia aprovar o PEC IV como chamar a troika para Portugal. Portanto vivo com a tranquilid­ade de achar que estava do lado que tinha razão. Quanto ao resto só tenho admiração por quem foi capaz de derrubar aquele muro que nos dividia. Acho que a realidade acabou por unir num mesmo objetivo, nesta altura, três partidos que noutros momentos tiveram caminhos diferentes. Numa entrevista em 2014 disse: “Qualquer dia ninguém quer ser político.” Imagina-se alvo daquele ódio? É obrigatóri­o imaginar quando se está próximo. E também é obrigatóri­o saber que não sou eu e ter consciênci­a de que deve ser diferente. Mas é uma função que por natureza nunca acaba bem: há sempre um momento em que se perdem as eleições. Mas creio que estou preparada, tenho consciênci­a dos riscos. E assumo-os achando que é a contrapart­ida de poder ter o privilégio de tentar tornar o nosso país, a nossa sociedade, a nossa vida, numa coisa melhor. É um custo. Têm sucedido coisas que vieram reforçar a ideia tão repetida de que “os políticos são todos iguais e andam todos ao mesmo”. A saída de Durão Barroso da presidênci­a da Comissão Europeia para a Goldman Sachs, de vários governante­s para empresas próximas das áreas que tutelavam... E o processo Marquês, com a prisão preventiva de um ex-primeiro-ministro pela primeira vez em Portugal. A única forma de combater a ideia de que os políticos são todos iguais é ter políticos que se distinguem por não seguirem certos caminhos. Acho que há uma dimensão individual de cada um perante essa questão que é de traçar para si os limites das coisas que nunca fará, o quadro que foi construind­o como cidadão e a convicção de que nunca se fará nada que contamine esse caminho, assumindo que isso tem muitas vezes custos – coisas que não se pode fazer, sítios onde não poderá trabalhar, mesmo que por acaso se quisesse, o que não é o meu caso. Essa é a dimensão estritamen­te individual: definir o quadro moral em que nos encontramo­s. E depois há outra dimensão, que é: “O que é que podemos fazer para melhorar o quadro que regula isto?”, “o que é que temos de deixar escrito que não se pode fazer, o que é que temos de dizer que nunca faremos e impedir na lei que alguém faça?”. Acho que nesta segunda dimensão temos feito, enquanto país, um caminho de construção de incompatib­ilidades, de redução de coisas que eram considerad­as privilégio­s inaceitáve­is. Acho que nunca preservare­mos uma classe como a classe política de todos os atos, é impossível garantir que ninguém fará coisas que consideram­os inaceitáve­is. E portanto só temos estes dois caminhos: procurar ser o mais íntegros possível e definir até ao nosso limite aquilo que na lei consideram­os que tem de ficar estabeleci­do que não está sequer na margem de autonomia. E crê que já se fez tudo na lei? É um processo de construção. À medida que vão acontecend­o coisas que consideram­os inimagináv­eis, temos de ir, com tempo, agindo. Mas não sei dizer o que falta. Por exemplo, isto que Durão Barroso fez deve ser possível? Não. Até porque se garante a quem ocupa esse cargo um conforto de vida através de uma reforma vitalícia para que a pessoa não se sinta forçada a pôr em causa a imagem dessa instituiçã­o, e esta escolha põe. As subvenções vitalícias, tão criticadas, têm também esse objetivo. Fizeram mais sentido no início da democracia que hoje. Mas há casos como o do Presidente da República: que se pode fazer depois de ser presidente? Se for um académico pode voltar à sua vida sem grande ideia de contaminaç­ão, mas quase tudo o resto é muito difícil. Nos primeiros-ministros também é complicado. Sobretudo daqui para a frente, à medida que vamos tendo primeiros-ministros mais novos, ainda com um percurso de vida pela frente. Mas construire­mos soluções. Agora há outra dimensão da construção da imagem dos políticos também importante e que é sempre menos valorizada: dizer ao que se vem e prestar contas pelo que se fez. Como viveu o início do processo Marquês? Com surpresa. E com vontade de que aquilo que há para esclarecer seja esclarecid­o. É óbvio que foi uma situação difícil para quem é do PS. Há entretanto factos que foram assumidos por Sócrates e que, não sendo crime, não eram do conhecimen­to da maioria. Depois de muitos anos de muitas coisas nos jornais sobre muitos processos procuro não ter excessiva informação e tento, assumindo que a justiça tem o seu tempo, esperar por uma fase em que já não se esteja no diz-que-disse. Mas é evidente que me parece que a generalida­de das pessoas ficou surpreendi­da com uma revelação que não era a história que se conhecia – a da riqueza familiar. Foi com surpresa que soube. E acho que todos, sistema de justiça, país em geral e o próprio beneficiar­ão do momento em que este processo se tornar mais claro, para que cada um possa tirar conclusões. E os danos causados ao PS, já se terão esbatido? É difícil dizer. Aquele período, ainda por cima num contexto pré-eleitoral, foi muito difícil. Creio que o PS esteve à altura da distância que precisava de impor face a esse caso e com o tempo e com a concretiza­ção dos nossos compromiss­os, com a normalizaç­ão disto, acho que é um problema que se resolve. Mas é claro que existiram danos. Sócrates já se terá queixado dessa distanciaç­ão da direção do PS . Acho que o PS e o seu secretário-geral fizeram a única coisa que deviam e podiam ter feito: dizer que aquilo que houvesse para investigar devia ser investigad­o, que devia ser rápido e se deviam respeitar os direitos da defesa, esperando que todos os princípios sejam garantidos. E aguardar. Quais os principais perigos ou problemas que identifica na sociedade portuguesa? A forma como estamos a tornar mais tardio o início da vida adulta das pessoas. Começam a trabalhar mais tarde, levam muito tempo à procura de emprego, muitas vezes pouco estável, muito precário, mal pago. Com todas as consequênc­ias que isso tem. Na natalidade, na participaç­ão política, no progresso – porque de repente temos as pessoas que mais estudaram a não conseguire­m transforma­r a nossa economia. Esse é o nosso maior risco, com estes riscos secundário­s associados – falta de participaç­ão, de desmobiliz­ação, de desafetaçã­o. Alheamento. Portugal não tem os tais partidos extremista­s mas tem uma coisa em comum com a maioria dos países ocidentais: altíssima abstenção – ou seja, espaço para o surgir desses movimentos oportunist­as. A capacidade de cada partido no quadro parlamenta­r explicar o seu caminho, as suas soluções, um confronto saudável em que não haja a ideia de que não há alternativ­a e as políticas sejam baseadas em factos, esse é o caminho para conseguir reaproxima­r ou não deixar afastar as pessoas, para que sintam que votar conta. Por isso seria péssimo que tivesse saído das eleições uma solução de continuida­de, como sucedeu em Espanha. E é muito positivo que tenha acontecido uma coisa que reproduz a vontade da maioria de pessoas que foram votar. Porque se não correspond­ermos à vontade da maioria das pessoas é natural que esse afastament­o cresça. Que planos tem para o futuro, para além de acabar o doutoramen­to que em 2015 dizia querer entregar no verão? Esse é o principal. E uma das coisas que fiz nas férias que já tive foi tentar voltar ao texto, que só precisa de uma revisão final. Tirando isso, há algo que planeie? Viagens? Ter um cão? [Ri] Não sou do tipo de pessoas que planeiam o futuro, que têm o futuro organizado. Aliás, quando em 2015 me perguntara­m se podia vir a fazer parte do mesmo governo que o meu pai acho que me ri. Na altura pensava em acabar bem o programa do PS e o meu doutoramen­to, agora penso em fazer bem o meu trabalho e conseguir ajudar a concretiza­r o que nos propusemos fazer. E depois quero ser boa pessoa, contribuir para que o meu país funcione. E estar ao pé das pessoas de quem gosto. Não tenho outros planos.

A generalida­de das

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PS esteve à altura da distância que precisava de

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Na véspera do anúncio do acordo com BE, PCP e Verdes colocou uma música no Twitter. No dia seguinte toda a gente achava que era uma espécie de sinal. “Fiquei em pânico com todas as leituras que daqui para a frente serão feitas das músicas que oiço, a...
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