O Palácio de Verão
Episódio 9 Todos os dias de agosto o folhetim de ficção política
NNo voo que partia de Lyon – quando da epopeia do Euro que galvanizava os portugueses – o Presidente sentou-se na terceira fila do aparelho da Portugália. A fase de grupos tinha acabado com o Portugal-Hungria, 3-3. Sendo o político português com mais experiência a influenciar congressos (faziao desde 1974), Marcelo Rebelo de Sousa sabia que havia empates mais promissores do que vitórias. E, de facto, o terceiro lugar conquistado nessa noite abria à seleção portuguesa uma passadeira vermelha até à final... Resumindo, Marcelo regressava muito contente a Lisboa. O avião enchia-se, pela coxia entrava um comentador desportivo. Marcelo exclamou: “Olha o melhor comentador desportivo de Portugal.” Tímido, António Tadeia sorriu. Passou um comentador político. E Marcelo: “Olha o melhor comentador político de Portugal.” Este, pouco tímido, disse: “Então não é o doutor Marques Mendes, que está ali sentado?” Marcelo espreitou para as filas de trás, fez adeus ao amigo e explicou-se: “Esse já não é comentador...” Mas comentador continuaria a ser Luís Marques Mendes. Semanas depois do episódio, no seu programa de domingo na SIC Notícias, ele criticaria não só os secretários de Estado socialistas que aceitaram a oferta da Galp para viajar a França como os deputados do PSD que justificaram com “trabalho político” a ausência no Parlamento. Sim, Marques Mendes continuava a ser comentador político, e era hábil. Sabia escolher as críticas para encaixar os criticados. Da sua análise ficavam de fora de culpa – porque não pagos pela Galp e sem justificações estapafúrdias – os campeões nacionais de viagens com cachecol ao pescoço, que os frequentadores dos charters desportivos costumavam reconhecer em Fernando Seara e... Luís Marques Mendes. Mas não tentem nunca desmontar como erro uma frase de Marcelo, sobretudo quando ele está muito contente. Aquele “esse já não é comentador...” era um não dizer, dizendo, que torna Marcelo obrigatoriamente escutável. Sempre. Sobre Marques Mendes e com ele presente, de há muito, Marcelo gosta de lançar o remoque, pontuado pela ponta dos dedos acariciando-se: “O Dr. Marques Mendes está com uma sedinha de política...” No fundo, é o elogio à vocação de um homem que soube sempre tirar partido em juntar interesses. Do grupo da sueca, dos PSD antigos do Norte (Eurico de Melo, Fernando Nogueira e o seu pai, António), ao grupo das perdizes, onde a caça, comida, era mero pretexto, Luís Marques Mendes sempre gostou de se juntar e disso fortalecer-se. Agora, era o grupo dos Luíses, por causa dos nomes próprios, dele, do líder parlamentar Montenegro e de Campos Ferreira. Eles frequentavam o Palácio de Belém, entrando pelo discreto Pátio das Damas, e os três até já lá tinham almoçado. Na sala de jantar da zona residencial, mais pequena do que a oficial dos banquetes, mas onde também Mario Draghi, o presidente do BCE, almoçou depois de convidado a assistir ao Conselho de Estado. Marcelo gostava de Montenegro, esperando que, dentro do PSD, o ajudasse no pós-Passos. Suspeitava (e talvez incentivasse) que Marques Mendes, antigo líder do partido, ainda se iludisse em voltar a sê-lo. E do modesto Luís Campos Ferreira esperava o papel útil que ele, talvez um dia venha a dar, se for preciso desvalorizar o grupo dos Luíses. O Presidente nunca perdia uma oportunidade pública de mostrar o seu apreço pelo líder parlamentar do PSD. Mas, por um daqueles seus paradoxos, Marcelo fazia de uma perigosa e já antiga frase de Montenegro em 2014 – “o país está melhor, os portugueses é que não” – a sua própria justificação política. Marcelo ajudara a inverter um dos dados da equação: os portugueses estavam melhores. Um pouco pelo mínimo reforço financeiro que o governo distribuiu e muito pela mudança de discurso dos atuais PR e PM. Marcelo acusava Passos Coelho de ter defendido, e fazer gala nisso, a austeridade como condição inevitável e até purgatória – e os portugueses sentiram-se encurralados. Todos sabiam que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa gostaria que Passos Coelho se afastasse, não continuasse a diminuir o PSD. E o líder social-democrata não escondia que a aversão era mútua. Da última vez que o Presidente convocara os partidos, Passos não foi, deu parte de doente. E nesse dia andou pelos lugares suficientes para mostrar o seu peculiar sorriso de cantos de lábios caídos, com que julgava compor a sua aura de mártir pela austeridade. Então, o comentador Luís Marques Mendes defendeu na televisão: “Desiludam-se os que já pensavam em eleições antecipadas.” E: “Não haverá crise política nos próximos tempos, designadamente a pretexto da aprovação do próximo Orçamento.” E: “Os portugueses querem estabilidade e não crises.” Isso foi o que os portugueses em geral ouviram. Dentro do PSD ouviu-se: Pedro Passos Coelho já era.
Marcelo gosta de lançar o remoque, pontuado pela ponta dos dedos acariciando-se: “O Dr. Marques Mendes está com uma sedinha de política...”