Pico: o nosso monte Olimpo
Nos dias 9 e 10 de setembro de 1887, um homem de 47 anos, com a sua comitiva, ascende ao cimo do Pico pequeno, plantado na caldeira do Pico grande, o ápice orográfico de Portugal. Chama-se Manuel de Arriaga. Desconhece que muito mais tarde será o primeiro presidente da República. Eleito deputado republicano pelo círculo do Funchal, em 1882, Arriaga experimenta com intensa comoção o regresso às ilhas do seu berço, do qual foi apartado por um pai conservador, que o deserdara pelo seu ideário progressista. Recebido em casa, com as honras públicas da sua celebridade política, Arriaga escreve e publica um Canto ao Pico, logo nesse ano de 1887. O texto não ficará na história da poesia portuguesa, mas ele testemunha a energia física e espiritual projetada por esse gigantesco vulcão, por ora adormecido, sobre todos os visitantes do grande grupo central do arquipélago açoriano.
Na primeira vez que atravessei o canal do Faial, as condições não seriam muito diferentes das descritas por Nemésio no seu Mau Tempo no Canal (1944). Agora tudo mudou. A segurança das embarcações e a qualidade dos portos permitem aos passageiros suportar, confortavelmente, as piores condições meteorológicas. Quando desembarco no cais de Madalena do Pico, vindo da Horta, sou recebido por Paulino Costa, diretor do Parque Natural do Pico (PNP). Na última vez que nos encontrámos, em junho de 2003, tentámos uma ascensão à montanha, mas fomos escorraçados pela chuva e por nevoeiros intensos (regressaria, com sucesso, em agosto desse ano, devido à generosa hospitalidade da família Góis-Rodrigues, da Silveira). Agora, na moderna Casa da Montanha, o PNP vela pela segurança dos caminhantes e pela integridade ecológica da paisagem. No ano de 2015 registou-se um recorde de 10 415 subidas. As novas normas obrigam a que todos os montanhistas levem consigo um localizador GPS, e, no conjunto da montanha, não podem estar mais de 160 pes- soas em simultâneo. Os casos de acidentes graves do passado dificilmente se repetirão. Mas a montanha é apenas uma das facetas desta ilha cuja face tem mudado, em grande parte devido ao reconhecimento internacional do valor do seu património natural. Seja a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, inscrita no Património Mundial da UNESCO em 2004, seja pela sua pertença ao seleto clube de geoparques da mesma organização (como parte do Geoparque Açores), ou pelas áreas integradas, tanto na Rede Natura 2000 como também na Convenção Ramsar, para a proteção das zonas húmidas.
Se, em 1924, Raul Brandão podia descrever o Pico como tendo o “aspeto de um grande luto, duma grande desolação”, hoje assiste-se, pelo contrário, a um claro renascimento da atividade económica, tendo como foco a visitação das suas belezas naturais. A tradicional cultura da vinha – bem retratada no Centro de Interpretação do Lajido de Santa Luzia – sofreu um novo impulso. Se em 2004 a vinha ocupava 160 hectares, em 2015 alargou-se para 500, com mais de 200 produtores recenseados, alguns deles muito jovens. Os visitantes pernoitam, em muitos casos, em turismo rural e alojamento local, garantindo que os recursos gerados ficam junto das populações que cuidam do património visitado, e proporcionando múltiplas iniciativas de promoção turística e cultural além da hotelaria e restauração. Quando olhamos as rilheiras, os seculares sulcos no basalto abertos por rodados de carros de bois, sabemos que isso faz parte de uma história ainda em processo de criação.
Em 1987 foi caçado o último cachalote. Como escreve Ermelindo Ávila, mesmo sem a consciência mundial da necessidade de proteção das baleias, a dureza e o risco dessa caça levariam, felizmente, não à extinção das baleias mas à dos baleeiros. Mas a sua audaciosa, temerária e brutal odisseia – imortalizada em Brandão, Nemésio e tantos outros – está devidamente preservada no Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico. A sua herança continua viva, desta vez em simbiose e não como predação desses imponentes cetáceos, num novo e pacífico ramo de negócio, o da observação das baleias (whale watching) em embarcações rápidas. Mas o Pico está repleto de surpresas. No Centro de Visitantes da Gruta das Torres, uma premiada obra arquitetónica dos arquitetos Inês Veira da Silva e Miguel Vieira, somos convidados a percorrer uma extensão de 450 metros, mergulhando no maior tubo lávico de Portugal, com uma extensão total de 5150 metros. Nesse ambiente de placenta telúrica, rasgado há 15 séculos por uma erupção vulcânica, escutei, com agradecida emoção, o músico Luís Teixeira a executar composições de sua autoria numa harpa gótica.
“Quando olhamos as rilheiras, os seculares sulcos no basalto abertos por rodados de carros de bois, sabemos que isso faz parte de uma história ainda em processo de criação”