Diário de Notícias

Ambos às avessas com EUA e UE, Putin e Erdogan renovam amizade

Nove meses após o derrube de um caça e quase um mês depois do golpe falhado, o líder turco vai hoje a São Petersburg­o reunir-se com o seu homólogo russo para relançar relações e aproveitar pontos em comum

- PATRÍCIA VIEGAS

A Turquia anunciou a 24 de novembro de 2015 que dois dos seus F-16 tinham abatido um SU-24 russo que violou o seu espaço aéreo junto à fronteira com a Síria. A Rússia negou a existência de qualquer violação e acusou o regime turco de estar a proteger o Estado Islâmico, chegando mesmo a divulgar fotografia­s de satélite aos meios de comunicaçã­o social internacio­nais. Ancara recusou na altura pedir desculpas e devolveu o corpo do piloto russo. Moscovo rejeitou uma reunião entre os presidente­s russo e turco, Vladimir Putin e Recep Erdogan. Nove meses depois esse encontro realiza-se, hoje, em São Petersburg­o, tendo Erdogan pedido a Putin desculpa por causa do derrube do avião e oferecido uma indemnizaç­ão à família do militar morto. O que aconteceu entre uma coisa e outra foi um golpe de Estado falhado na Turquia – que fez 230 mortos –e a consequent­e purga de Erdogan, que o deixou de costas voltadas com os EUA e – ainda mais – com a UE.

“Nunca tivemos um plano deliberado para abater um avião russo. Assumindo os riscos de com grande esforço recuperarm­os o corpo do piloto russo da oposição síria para levá-lo para a Turquia. Os procedimen­tos para o funeral foram conduzidos conforme os preceitos religiosos e militares. Sinto muito. Consideram­os a família do piloto russo como uma família turca. Estamos dispostos a qualquer iniciativa para aliviar a dor e a gravidade dos danos causados”, lê-se em carta enviada no final de julho por Erdogan a Putin, citada pelos media. Razões económicas explicam esta reaproxima­ção do líder turco ao seu homólogo russo. Após o incidente do avião, a Rússia anulou a isenção de vistos com a Turquia, desaconsel­hou viagens para território turco aos seus cidadãos e viu os seus clubes de futebol cancelarem idas àquele país. O castigo russo causou uma quebra de turistas russos em solo turco na ordem dos 95%. O impacto das sanções russas poderá encurtar o cresciment­o turco em 2016 entre 0,3% e 0,7%, segundo dados do Banco Europeu de Reconstruç­ão e Desenvolvi­mento citados pela Bloomberg. O reavivar do gasoduto TurkStream também é do interesse de Erdogan.

“É uma visita histórica, é um novo começo. Na reunião com o meu amigo Vladimir penso que se abrirá uma nova página nas nossas relações bilaterais”, disse Erdogan no domingo à agência russa TASS. O mesmo dia em que prometeu aplicar a pena de morte no país se for aprovada no Parlamento.

“Seguimos com cuidado os desenvolvi­mentos na Turquia”, disse o vice-presidente da Comissão Europeia, Maros Sefcovic, num e-mail enviado à agência Reuters, numa altura em que a UE desconfia das intenções de substituir a Ucrânia pela Turquia como país de trânsito do gás russo. Às avessas com a UE por causa da crise dos refugiados e da repressão aos golpistas, Erdogan junta-se a um Putin às avessas com a UE por causa de questões como a da Ucrânia (nomeadamen­te após a anexação da Crimeia). E também a um Putin às avessas com os Estados Unidos de Barack Obama. Desde o golpe falhado de 15 de julho, o regime turco suspendeu 60 mil funcionári­os públicos, prendeu seis mil pessoas, entre militares suspeitos de envolvimen­to no golpe, juízes e até jornalista­s. “Putin e Erdogan têm muito em comum. Ambos são pioneiros num estilo de autoritari­smo populista. E ambos partilham de uma profunda suspeita em relação aos Estados Unidos”, escreve Owen Matthews, na revista Newsweek, notando que Erdogan acusou Washington de proteger o seu rival Fethullah Gulen, o qual responsabi­liza pelo golpe falhado contra o regime. “Quem proteger os inimigos da Turquia não pode ser um amigo”, disse o presidente da Turquia, país que, tal como os EUA, é um Estado membro da NATO.

“O estilo de liderança entre os dois líderes tem vindo a tornar-se semelhante. Desde a tentativa de golpe, Erdogan tornou-se mais como Putin na forma de curvar os seus opositores em casa”, constata o artigo publicado naquela revista. “Erdogan deve sentir uma certa inveja de Putin pela sua habilidade de fazer aquilo que bem quer no seu país. Os líderes autoritári­os têm noções semelhante­s das ameaças contra o seu poder e o seu país. Ambos veem o mundo como uma arena para uma competição feroz no qual os benefícios económicos triunfam sobre os valores”, escreveu Leonid Bershidsky, num artigo que assinou para a Bloomberg. Erdogan, de 62 anos, casado, pai de quatro filhos, Putin, de 63 anos, divorciado, pai de duas filhas, apertam hoje as mãos para selar esta nova amizade de que tanto desconfiam a UE e os EUA.

Sanções russas poderão encurtar cresciment­o económico turco

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