O grau de arrependimento de Catarina
Arrependida?! Arrependida como quem dá o nó com o jeitoso do bairro e, vai-se a ver, ele não sai do sofá, camisola cavada e a engordar? Arrependida a ponto de voltar atrás se pudesse?... Oh angústia, oh indecisão...
UUm título é um grito. Uma coisa em forma de “Silêncio/ De silêncio faço um grito”, se for Amália a cantar. Se for no tripeiro Bairro do Cerco, um título, ou grito, seria mais assim: “Tou tão fartinha, mas tão fartinha de t'aturar!” Sabia-se que não era Amália, já nada é Amália, e se fosse no Cerco já se teria ouvido a voz do marmanjo pelo prédio abaixo: “Oh filha, desanda! A porta da rua é serventia da casa...” Mas não. Era um título do jornal Público: “Catarina Martins: Todos os dias me arrependo da geringonça.” Olá... Arrependida?! Arrependida como quem dá o nó com o jeitoso do bairro e, vai-se a ver, ele não sai do sofá, camisola cavada e a engordar? Arrependida por ter empatado tudo num café sem clientela? Descontente a ponto de voltar atrás se pudesse?... Ú kéres!, como se diz no Facebook, que foi para aí que o título saltou depois de lançado nos jornais. Nas velharias de papel, ainda se podia sugerir em letras gordas o que em baixo, em miúdas, ia dito mais ou menos, de forma mais longa e levemente parecida. Nesses tempos, o abuso dos títulos sempre era desculpado pela faculdade dos picuinhas poderem inteirar-se das frases inteiras no artigo. Evolui-se, porém, para esta modernidade de um título, se calha cair no goto e emigrar para as redes sociais, não arrastar consigo as explicações que talvez houvesse no papel do jornal. No Facebook e Twitter, o título ficava-se pelo grito. Vá lá saber-se se de estertor com faca cravada ou de prazer com olhos revirados para o teto. O facto é que governo e aliados estavam, até então, a passar por um agosto anestesiado pelas toalhas de desistência dos adversários, atiradas ao ringue – “eles duram a legislatura”, já admitira Passos, “eles vão agarrar-se até ao fim”, concordava Cristas. E eis senão quando, Catarina Martins – visualizada, já que ela era muito expressiva, devia estar a atravessar uma ponte, céu em brasa e ela com as duas mãos agarradas à cara, olhos esbugalhados e boca de espanto – produziu o tal grito de arrependimento. Em pintura nórdica dava um belo quadro. Em facto político deu vários telefonemas e um sobressalto de posts e sms. O socialista Pedro Nuno Santos, que estivera atrás de António Costa quando este assinou o pacto com o BE no Parlamento, ligou ao deputado bloquista Jorge Costa, que estivera, na mesma ocasião, atrás de Catarina: “Então, pá?” E o outro: “Não sei de nada, pá.” Os bordões serviam para isso, uma vontade de contactar, sem daí se inferir grandes conclusões. Pedro Nuno telefonou ao primeiro-ministro: “Ela que disse, disse, mas a minha fonte não deu grande importância.” António Costa tinha ido passar o domingo a Fontanelas, onde tinha casa, depois de ter andado por Pedrógão Grande a inaugurar um monumento a dois capitães-generais que haviam conquistado Ceuta, 600 anos antes. Ele discursou mais sobre incêndios que da saga das Conquistas, não fossem os parceiros do BE reagir mal ao saudosismo. Mas isso não o livrara, pelos vistos, da chicana. O primeiro-ministro andou pelas vivendas vizinhas à procura de um exemplar do jornal. Só o terceiro vizinho tinha um, que lhe ofereceu de bom grado. Em casa, Costa pôs-se a estudar o jornal. O título de capa não permitia dúvidas nas palavras, “todos os dias me arrependo da geringonça”, mas ser tão pequenino e sem foto podia sugerir manipulação – a frase, a ser exata, nas letras e na intenção, teria sido escolhida para manchete... E, de facto, lá dentro, era a jornalista que dizia as palavras: “Não houve nenhum momento em que se arrependesse da criação da geringonça?” Com o que Catarina Martins concordou: “Todos os dias me arrependo.” E, instada a explicar-se melhor, ela generalizou. Costa arrumou o assunto na sua cabeça: “Faltou-lhe malandrice para perceber o eco que ia ter, foi o que foi...” E meio minuto depois, sobressaltou-se: “Será que lhe faltou?” Mas varreu. Aproveitou para ler toda entrevista dela. Soube que à líder do BE, sobre as questões internacionais, preocupavam-na Trump, a NATO a bombardear e a UE a tratar mal os seus imigrantes... “A sorte de termos poucos muçulmanos, se não esta cabecinha ia dar-nos um problema sério...”, pensou Costa, virando-se para o lado em que descansava melhor, tranquilo por o Facebook não ter vocação para caçar contradições mais elaboradas. Ao fim da tarde, o primeiro-ministro passeou pelos sites de jornais. “Jerónimo de Sousa diz que o governo vive na ilusão”, dizia um. E outro: “Jerónimo põe a hipótese de votar contra o Orçamento 2017.” Foi ao Facebook, mas as declarações do comunista num piquenique não tinham grande repercussão. Ainda?... “Em todo o caso tenho de arranjar um assessor especializado em ler aspas”, decidiu.
António Costa ainda pensou: “Faltou-lhe malandrice para perceber o eco que ia ter...” E meio minuto depois: “Será que lhe faltou?” Mas não deu grande importância
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