Diário de Notícias

O BANGLADESH­IANO QUE O GOLO DE ÉDER TIROU DE CASA PARA FESTEJAR

- MARIANA PEREIRA

Moin Uddin Ahmed cumpriment­a um sem-número de pessoas no Largo do Intendente. É a sua casa há seis anos. Entramos na Travessa da Cruz aos Anjos para fotografar. Na parede está escrito: “Pretos Fora”, depois riscado e substituíd­o por “Quem diz são os racistas”. Moin não é “preto”, é do Bangladesh. Diz que ainda hoje, às vezes, quando está “entre a multidão”, senta-se e pensa: “Mas o que é que eu estou a fazer aqui? Que língua é esta? Que roupas são estas?” Para irmos do Largo do Intendente ao Bangladesh seria preciso atravessar pelo menos dez países. Ele trabalha ali perto, no Centro Nacional de Apoio ao Imigrante, e também ali já dançou e ensinou danças de Bollywood. Resultado de crescer no seio de uma comunidade hindu, ainda que os seus pais fossem muçulmanos.

Saiu do Bangladesh, de Chittagong, a sua cidade natal e a segunda maior do país, para estudar em Inglaterra. Fez o primeiro ano de licenciatu­ra em Business Studies (Gestão) na londrina Queen Mary University, ainda o governo trabalhist­a de Gordon Brown estava no poder. “As minhas propinas eram de três mil libras por ano. Os meus pais já morreram, deixaram algum dinheiro, e eu pensei que ia utilizá-lo para estudar. Mas, de repente, quando o David Cameron veio, as propinas saltaram para 15 mil libras. Para mim era impossível, porque 15 mil libras são dois milhões de takas, a nossa moeda. Dois milhões de takas são pelo menos quatro vidas de trabalho.” Outra agravante: o tempo de trabalho legal para um estudante como Moin, de um país fora da União Europeia, foi reduzido de 20 para 10 horas semanais.

Então fez um plano. “Decidi: vou para o centro da Europa e depois vou ver universida­des, porque é uma vergonha voltar sem estudar.” Olhou para o mapa da Europa e viu que Budapeste era o centro. Partiu para a capital húngara sem falar sequer com alguém sobre isso. Chegou. “Saí do aeroporto e fumei três cigarros, esperei uma hora. Não me estava a sentir nada bem lá, não sei porquê, não estava a gostar. Voltei outra vez para dentro, entrei no aeroporto e naquela altura é que me veio à cabeça: vou para Portugal. Era o último país da Europa. Pensei: venho aqui e vou subir até à Alemanha, vou ver as universida­des e depois volto para Inglaterra se tiver alguma boa notícia. Se não, volto para o Bangladesh.”

Moin tinha um amigo madeirense em Londres, o João. Mas o que sabia de Portugal resumia-se em três coisas: “A bandeira portuguesa, porque existia no dicionário e na escola ensinavam-nos as bandeiras, o Vasco da Gama, porque encontrou aquele caminho da Indo-Ásia, e o Cristiano Ronaldo.” Mais nada. “Comprei um voo da TAP, no dia 23 de julho. Faz seis anos. Às onze da noite vim cá ter. Como não conhecia ninguém, de repente fiquei com medo. Não quis sair sozinho do aeroporto. Muitos taxistas vinham falar comigo e eu só entendia duas coisas: xxxxx, rrrrr...” Nessa noite não conseguiu sair do então Aeroporto da Portela, hoje Humberto Delgado, e passou-a em branco ali mesmo.

“Uma senhora de idade que tinha uma loja, lá dentro do aeroporto, viu-me. Veio ter comigo e pegou a minha mão. Estava a dizer qualquer coisa e eu não entendia nada. Puxou-me e levou-me para o autocarro. Trouxe-me até ao Rossio. Depois até ao pé do Hotel Mundial. Falou, falou, eram seis da manhã. Eu só abanava a cabeça, não entendia nada, nem sei por que acompanhei a senhora. Deixou-me lá, porque o dia estava a crescer. De repente, vi muita gente da Ásia, comecei a ouvir bengali, a minha língua. Fui falar com umas pessoas. ‘Então são do Bangladesh? Da minha terra?’ Eu nem fazia ideia de que muita gente do Bangladesh vivia aqui.” Foi a dez minutos do sítio onde nos sentamos para conversar, no centro do Largo do Intendente.

Estava, final e inesperada­mente, em Lisboa. Mas não falava português. Acabaria por ser enganado por um homem bangladesh­iano a quem entregou 2630 euros em troca de um contrato de trabalho que nunca chegou. “Fiquei sem dinheiro, dormi na rua. Sempre aqui nesta zona. Depois sentei-me comigo e pensei: ninguém consegue ajudar-me, porque estas pessoas não sabem as informaçõe­s nem falam bem português. Vou estudar português.”Bateu à porta da Escola Secundária de Gil Vicente, na Graça, e lá encontrou a professora Maria Alexandra Caetano, que além de lhe ensinar português lhe arranjou trabalho. “Ainda estava ilegal e o SEF [Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras] recusou-me porque aqui em Portugal um homem não faz trabalho doméstico”, conta. O senhor morreu e ele arranjou trabalho num minimercad­o de bangladesh­ianos. “Era uma miséria, dormia no chão.” Depois apareceu este trabalho no Centro Nacional de Apoio ao imigrante, onde Moin se diz sentir dividido ao fazer a mediação: “Sinto o lado deles e sinto o lado português também. Fico no meio.”

Entre o trabalho e a sua paixão, a dança de estilo Bollywood que pratica e ensina sempre que pode , Moin quer voltar a estudar. “Já percebi: a vida não vai dar muita coisa com estudo, por isso vou estudar uma coisa de que gosto.” Comunicaçã­o ou jornalismo. Mesmo que nunca o venha a exercer. Em novembro vai visitar o Bangladesh pela primeira vez em oito anos. Mas é aqui que diz querer ficar. “Sinto-me um português e um bengali.” Uma prova? “Quando vi que o Éder marcou o golo não consegui estar em casa. Só às duas da manhã é que me lembrei que ia trabalhar e acordar às sete.”

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