Mistérios que mudaram Afonso Pimentel e João Arrais
Afonso Pimentel e João Arrais foram tocados e transformados pelo lendário e derradeiro filme de Raúl Ruiz, Mistérios de Lisboa, quinta-feira de regresso ao grande ecrã
As palavras de Camilo Castelo Branco adaptadas por Carlos Saboga e filmadas por Raúl Ruiz produziram um milagre chamado Mistérios de Lisboa, a produção portuguesa mais aclamada internacionalmente nos últimos anos. Milagre no sentido de ter uma duração que ultrapassa as quatro horas e um fôlego épico a que o público já não estava habituado. Quando se prepara o sexto aniversário da estreia, regressa às salas depois de um sucesso no circuito dos festivais e de um fenómeno de popularidade na Argentina, onde esteve há pouco em exibição mais tempo do que o previsto e provocou uma reação da crítica com uma consensualidade raramente vista.
Esta operação de reprise é mais uma oportunidade para os portugueses poderem ver uma obra tão aclamada lá fora e de uma maneira diferente: para além da reposição do filme e de debates após algumas sessões, haverá também a exibição da série televisiva completa em grande ecrã e numa versão remasterizada. Para o seu produtor, Paulo Branco, torna-se importante esta missão de quase serviço público, quanto mais não seja para uma nova geração descobrir o apelo folhetinesco de Camilo. Nesta meia dúzia de anos, a derradeira obra de Ruiz esteve sempre viva. Do elenco, composto por grandes vedetas internacionais como Clotilde Hesme, Léa Seydoux ou Melvil Poupaud, dois jovens atores portugueses sentiram o antes e depois desta obra. Afonso Pimentel e João Arrais, ambos na pele do órfão Pedro da Silva.
Para Arrais, que começou as filmagens ainda com 13 anos, Mistérios de Lisboa foi a sua estreia no cinema numa interpretação que denotava um rosto com graça cinematográfica. “Na altura, com aquela idade, nem tive noção da grandeza da obra, embora tenha sido naquelas filmagens que percebi que queria mesmo ser ator – estava um pouco hesitante entre o futebol... Ter feito parte dos Mistérios de Lisboa foi algo realmente incrível. Agora que os anos passam é que percebo isso!”, conta-nos um jovem ator que depois desta estreia tem sido presença regular na ficção televisiva mas também nos projetos de cinema de Carlos Conceição, cineasta da nova geração.
Quando Mistérios de Lisboa começou a marcar presença em festivais (Toronto, San Sebastian, etc.) e a receber prémios mundo fora (Satellite Awards, EUA, Prémio Louis Delluc do Melhor Filme francês, França), João lembra-se do orgulho que sentiu: “Era aquela sensação de que o meu trabalho também estava a ser visto lá fora. Hoje olho para ali e acho estranho. Parece alguém com o mesmo nome, enfim, é muito engraçado ver como mudei tanto fisicamente.” Para já, afirma ser oportuna esta segunda vida em cinema da obra: “Muita gente em 2010 não viu o filme devido àquele preconceito de ser português e por ter mais de quatro horas. Espero que agora consigam ver...”
Pedro da Silva foi um marco para Afonso Pimentel, cuja estreia em cinema tinha sido em Adeus, Pai, de Luís Filipe Rocha, em 2006. “Na altura não previ o quão marcante seria o Mistérios de Lisboa. Senti que o Raúl era especial. A forma como as cenas eram preparadas. A carga cultural que ele trazia para cada cena com os detalhes que criava a partir do guião do Saboga. A relação educada e criativa que estabeleceu com todos, em especial com o André Szankowski [o diretor de fotografia] foi fundamental para que o filme fosse a peça única que é”, conta o ator que tem seguido em paralelo uma carreira como realizador de curtas-metragens, como o recente Dois Minutos, com Alexandra Lencastre e Beatriz Batarda.
Sem grande hesitação também confessa que Mistérios de Lisboa mudou-o enquanto artista: “Agora, a esta distância, posso dizê-lo sem ser para ficar bonito. Como ator, relembrou-me que muitas vezes a construção de personagem não se baseia nas coisas mais óbvias.”