Na teia romanesca de Camilo
No regresso às salas de
Mistérios de Lisboa
(2010) evoca, inevitavelmente, o tópico das adaptações literárias de clássicos, essa relação laboriosa entre a escrita romanesca e o grande ecrã. Neste sentido, e perscrutando a filmografia de Raúl Ruiz, é interessante observar que, uma década antes de realizar Mistérios, o cineasta chileno já se tinha aventurado no mesmo tipo de literatura movediça, com a adaptação do último volume da suprema obra de Marcel Proust. Pouco ditoso, esse filme homónimo do referido volume, OTempo
Reencontrado (1999), seria, ainda assim, um passo essencial na caminhada até à primorosa transposição do romance de Camilo Castelo Branco. Com efeito, desta produção de Paulo Branco – que figura entre os derradeiros trabalhos de Ruiz – se pode dizer que é expressão rigorosa dos labirintos formais do seu realizador, entendido no espírito folhetinesco de Camilo. Com um lugar especial nas cinematografias da América Latina, Ruiz começou por se destacar, no início dos anos 1970 (com a ascensão de Allende), ao lado de Miguel Littin, Aldo Francia, Helvio Soto e Patricio Guzmán na defesa do poder ameaçado. Era um cinema absolutamente inovador, que surgia como veículo de experimentação da linguagem e dos modos de comunicar. Nesse período que antecedeu o golpe de Pinochet, em 1973, levando o cineasta a sair do Chile, a sua obra ficou mesmo marcada por uma invulgar diversidade, que tinha tanto que ver com o formato e duração como com uma tendência para a desconstrução narrativa. No fundo, os sinais revelados nesses primeiros momentos, e espelhados em mais de cem títulos, são as qualidades soberanas de Mistérios de Lisboa: um filme sem medo de durar quatro horas e meia, que percorre enigmas históricos conduzidos pelo argumento de Carlos Saboga e uma radical leitura da câmara.