Marcelo outra vez na Festa do Avante?
O Presidente inventara a palavra descrispação. Mas as aspas da Catarina e os provérbios de Jerónimo tinham acenado outra vez com a crise. Entre neologismos, aspas e adágios, Portugal parecia uns jogos florais
OO verão político parecia de ficção, fosse ele mar seria o terror dos surfistas, porque flat. Relembra-se: até os dois líderes da oposição, Passos e Cristas, já tinham dito que a coisa, o governo, estava ali para durar. Hélas!, a crise parecia ter ido a banhos. Foi então que se deu aquele caso das aspas, Catarina Martins a dizer estar “arrependida da geringonça”. O que, depois de uma análise sumária às aspas, que no fundo são simples vírgulas dobradas, revelou-se serem diques, apesar de duplos, bem frágeis. Elas tinham sido manipuladas para induzir um pouco de vida ao coma da falta de crise que se vivia. Acalmado o surto breve de excitação, e no mesmo dia da crise das aspas, o outro parceiro da aliança governamental, o popular, no sentido Santa Iria da Azóia do termo, Jerónimo de Sousa também questionou o PS. Ou assim pareceu. O que em época de calmaria era peixe – se parece crise é crise – porque tudo que vem à rede o é, como diz o povo. Aliás, foi citando este e a sua sabedoria, “não bate a bota com a perdigota”, que Jerónimo exigiu a António Costa a escolha entre as ameaças da UE e as exigências dos trabalhadores. Ouvido com rima, parecia um aviso sério, melhor a bota e a perdigota do que “nada vale senhoria sem companheiro ou amigo”, que, apesar de popular (e, logo, sábio), soava a ameaça irreversível de adeus ao primeiro-ministro. Todos concordavam, o bom nos comunistas era um não ser um não e um sim, um sim, mas o pior era quando lhes dava para dizerem frases mais longas, como acontecia frequentemente a Jerónimo. Muitos ainda se lembravam de um discurso dele, naquele 2011 em que o PS era tão CDS como o PSD e, juntos, iguais em todas as permutações à volta dos três. Nesse dia, em Santiago do Cacém, o líder do PCP proverbiou o seguinte: “Juntaram-se os três à esquina a dançar a concertina, a dançar o solidó”, seguido da necessária explicação: “Três notas em que eles, camaradas, substituíram o só, o li e o dó por FMI, UE e BCE.” A escala musical ganhou duas notas e um discurso perdeu o sentido, mas siga a banda. Também aquele fim de semana de minicrises, no verão de 2016, estava a ficar confuso, por isso o líder comunista decidiu clarificá-lo. Tendo-lhe sido perguntado se também ele se arrependia da geringonça, o proverbial Jerónimo respondeu: “Não nos arrependemos nem temos medo de nada. Quem tem medo compra um cão.” E a sabedoria popular voltou a mandar a crise a banhos. No meio disto, o Presidente Marcelo sentiu que ficara com um problema às costas. Ele tinha apostado num neologismo, quando foi a Reguengos de Monsaraz, em abril, poucos dias depois da posse. Aí criticou o Moraes, o Aurélio, a Michaëlis, enfim, todos os dicionaristas da língua pátria. Poucos notaram o ataque.Visitava-se uma destilaria de gin nacional, e Marcelo gabou-lhe a suavidade. Disse: “Todos os políticos deviam tomar disto, ficavam mais suaves, isto é bom para a descrispação.” Ide aos grossos volumes: crispação existe, descrispação não. Raio de gente amarga, a precisar de um neologista em Belém. Pareciam uns jogos florais, depois dos provérbios comunistas, os neologismos do Presidente, mas eram mais do que isso. Nesse dia, de cálice na mão, Marcelo estava a anunciar um programa. Semanas depois, no 10 de Junho, houve parada militar no Terreiro do Paço, as primeiras, desde o 25 de Abril, naquele local de Dia da Raça, como lhe chamou Salazar. Mas não era concessão ao passado, era dizer que as Forças Armadas de um ou de outro tempo atravessavam as datas. Piscar de olho à direita. E a tribuna ficou virada ao rio, em lugar diferente da do almirante Américo Tomás. Piscar de olho à esquerda. Descrispação era uma palavra que não existe e, apesar disso, levava a estas pequenas mudanças. Para levar a cabo este entendimento, Marcelo gostaria de oferecer metade do seu mandato, porque piscar o olho também cansa.Vá lá, fosse até as autárquicas, no outono de 2017, tudo a correr internamente sem crise de maior. Internamente, já sem contar com aquelas coisas das finanças e bancos, onde aos portugueses restava ser o que cabia aos pré-históricos sobre o trovejar – coisas dos deuses. Cá dentro, porém, seria tempo de pedagogia do entendimento, ok? Isso pareceu assim, até à minicrise das aspas e dos provérbios. Mas, apesar de tudo ter ficado na mesma, Marcelo percebeu que o prazo tinha encurtado. Agora todos esperavam a Festa do Avante: se Marcelo não voltasse lá, este setembro, era sinal de crise... O que fazer? Isso não, parecia Lenine... Ia ou não ia? No ano passado, na festa, até jantara com os mineiros de Aljustrel. Lembrou-se: “Caso vá, não esquecer o tabuleiro.” No ano passado, não o despejara, como pedia um aviso na mesa coletiva.
Marcelo percebeu que o prazo tinha encurtado, não se esperaria pelas autárquicas. Agora todos olhavam para a Festa do Avante: se ele não voltasse lá, era sinal de crise...
Continua amanhã. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão em www.dn.pt