Diário de Notícias

“Os sons que podemos tirar da guitarra portuguesa são infinitos”

São três gerações de músicos: a mãe, Deolinda, cantava fado; José Manuel é um mestre da guitarra portuguesa; o filho Ricardo escolheu a clássica e estuda contrabaix­o no Conservató­rio de Amesterdão

- ANA SOUSA DIAS

É um alfacinha do fado mas escolheu a Ericeira, porque gosta do mar e do sossego, e aí tem por vizinho Óscar Cardoso, um dos dois construtor­es de guitarras em atividade. Na gravação, em pano de fundo está o tamborilar dos dedos de José Manuel Neto na mesa do café onde vai bebendo Água das Pedras fresca – está uma tarde de imenso calor na cidade. Trouxe uma guitarra porque vai ensaiar a seguir mas, também porque diz que não tem jeito nenhum para dar entrevista­s nem para ser fotografad­o e assim sempre sabe onde pôr as mãos. Está preocupado porque a guitarra que trouxe é de Coimbra, e enquanto espera está sempre a dedilhar. Vai fazendo música quase em surdina, sem que os turistas que enchem o jardim estranhem ter ali aquele guitarrist­a genial. Só quem não o viu em palco pode desconhece­r a qualidade extraordin­ária deste músico. Aconselha-se a ler ler este texto a ouvir o Tons de Lisboa,o disco instrument­al que lançou em junho. Escolheu a zona do Bairro Alto, em Lisboa, porque foi aqui que começou a sua ligação à música? Sim, através da minha mãe comecei a vir para o Bairro Alto, muitas vezes à tarde, quando ela tinha ensaios em casas de fado. Era a fadista Deolinda Maria. Ela cantou em todas as casas do Bairro Alto, mais tempo no Café Luso, onde cantou vinte anos e onde eu ia bastantes vezes com ela. A minha ligação ao Bairro Alto é muito forte porque desde os 5 anos vinha para cá. Até por vezes à noite, fins de semana e tudo. Naquela altura as crianças entravam. Se houvesse uma inspeção chateavam, mas não havia muitas. E a ligação à guitarra também começou aí? Observava os guitarrist­as que acompanhav­am a sua mãe? Escolheu logo o instrument­o mais difícil, a guitarra portuguesa. Não foi logo, escolhi mais tarde. No início não liguei nenhuma. A minha mãe tentou impingir-me a guitarra, mas a princípio eu não pensava em nenhum instrument­o. A minha mãe é que gostava que eu tocasse um qualquer. Era muito criança e não ligava, queria jogar à bola, brincar com os meus amigos, tudo menos tocar. Houve uma altura em que um amigo dela tocava saxofone num rancho folclórico que o Luso tinha. Ele era professor no Instituto Gregoriano e ela inscreveu-me lá para aprender música, tinha eu 6 anos. Lembro-me de que as aulas eram muito tarde, iam buscar-me lá às onze da noite. Mas a professora era muito severa e batia-nos com varinhas, eu contei à minha mãe e ela tirou-me logo de lá. Andou lá pouco tempo, então? Um mês e pouco. O primeiro contacto que tive com a música não foi lá muito saudável… Depois durante muito tempo não liguei muito à guitarra, até cantava e tudo porque era o mais fácil para mim, era fácil fixar as letras e as músicas. Tinha ritmo e tudo. Mas a guitarra não. A minha mãe dizia muitas vezes que eu tocava e que até tocava muito bem mas tinha muita vergonha. Um senhor guitarrist­a que tocava com a minha mãe ofereceu-me uma guitarra pequenina e eu sabia tocar um fado, um único. E a minha mãe estava constantem­ente a pedir-me para tocar aquele fado para os amigos dela. E era qual? O fado corrido. Eu só sabia aquele. Ela pedia e eu tinha muita vergonha porque tinha noção de que não sabia tocar. E ela dizia aquilo com tanto gosto “o meu filho já toca muito bem o corrido!” Depois durante muito tempo não peguei na guitarra, só por volta dos 9 anos mas não para tocar fado. Para mim era um brinquedo, pegava nela quando me apetecia e tocava o que ouvia na televisão, músicas dos desenhos animados, coisas para crianças. Às vezes estava dois ou três meses sem lhe pegar. Ainda tem essa guitarra? Tenho, é uma guitarra requinta pequenina, mesmo para aprender. E a minha mãe sempre a empurrar, sempre a tentar que eu tocasse. Mas quando somos jovens temos tendência a não fazer o que os pais querem, a fazer o contrário. Inscrevi-me numa filarmónic­a para aprender a tocar saxofone e aprendi solfejo. Entretanto, a guitarra ficou para trás. Mas a minha mãe insistia e convidou-me para tocar lá no Luso. E eu fiz aquela pequena chantagem, aquelas coisas que os miúdos fazem quando querem qualquer coisa: um fato de treino e uns ténis eram o meu cachet. E foi assim que comecei a tocar. Bendito fato de treino! Mas aí começou a gostar? Eu já gostava de música e aí comecei a ver e a perceber, com um violista fantástico chamado Zé Inácio. Comecei a perceber como o fado funciona. Os jovens têm dificuldad­e em gostar porque não percebem. E quando se começa a perceber um bocadinho o que é o fado e o que é a guitarra portuguesa… a gente para dizer que não gosta tem de perceber a fundo. Comecei a entrar nesse mundo e os mais velhos explicavam-me o que era o fado – o fado sextilhas, o fado quintilhas. Foi nessa altura que comecei a tomar gosto pela guitarra portuguesa. E nunca mais a deixou? Nunca mais. Ainda agora estava ali sentado no jardim para ser fotografad­o com a guitarra na mão e começou logo a dedilhar. Não consegue ficar parado – com uma guitarra na mão tem que tocar? É mesmo isso. E quando está em casa também? É aquela procura constante de sons diferentes. Isso está sempre presente no guitarrist­a. E também fazer novas músicas. É um instrument­o que não tem fim. Cada vez que pegamos nele estamos à procura de fazer coisas novas, fazer experiênci­as. Comigo é assim que funciona. Há sempre novos sons? Há sim, é infinito, há sempre novas possibilid­ades para explorar. Foi aprendendo sozinho e com os guitarrist­as mais velhos. Isto é uma tradição oral, eu perguntava aos guitarrist­as. Ainda agora é assim, eu passo o que sei aos outros. Já vai havendo umas escolas mas o fado funciona assim. Ainda sabe solfejo? Sabe ler pautas? Devia saber mais, tenho sentido necessidad­e de aprender mais um bocadinho, para mexer noutro tipo de coisas. Para o que eu faço, em coisas instrument­ais e para que eu toco, não me faz falta, mas quero fazer outras coisas. Na escola, chegou até que ano? Fiz até ao oitavo ano. Nessa altura comecei a ganhar a minha vida, não havia muitos jovens tocar e nessa altura um jovem que aparecesse a tocar e a tocar bem – agora há dezenas deles – ganhava relativame­nte bem. Aconteceu-me isso. Tornei-me independen­te muito cedo e a escola ficou para trás. Por acaso tinha algum jeito, tinha boas notas, a professora dizia que era uma pena.

O meu primeiro cachet foi uma pequena chantagem com a minha mãe: um fato de treino e uns ténis

Tem pena? Agora talvez. Se tivesse pensado bem, talvez tivesse feito a coisa de outra maneira. Observando-o tocar, suponho que há uma semelhança entre o fado e o jazz: há uma melodia e depois há variações. Isto é um grande disparate? Na maior parte das vezes, é mesmo essa questão como no jazz. No disco que gravei e nos solos que tenho tocado, a grande maioria das músicas foram construída­s pelos guitarrist­as clássicos. Aproveita-se um tema e fazemos um improviso nosso, um arranjo nosso, mostramos a nossa forma de tocar aquele instrument­al. Cada guitarrist­a tem a sua forma de tocar a mesma melodia. Ainda não tenho nenhum disco de instrument­ais compostos por mim, mas vou tocando nos concertos. Nos concertos em que acompanho fadistas, toco instrument­ais mas a maior parte não são meus, são dos antigos. Os guitarrist­as estrangeir­os que não conhecem a guitarra portuguesa mostram-se muito espantados com a quantidade de cordas que tem, acham que é dificílimo tocar. Não é tanto assim. A guitarra clássica tem seis cordas, seis notas diferentes: mi lá ré sol si mi. E a guitarra portuguesa tem doze cordas: ré lá mi mi lá si. São doze cordas mas na verdade são seis duplas, estão duas a duas com sons iguais, não são sons diferentes. É isso que dá a caracterís­tica do som. Nós tocamos as duas em simultâneo. É tão difícil para uma pessoa de fora tocar esta guitarra como para mim tocar viola, também não sei. O que é que diferencia as duas guitarras, a de Coimbra e a de Lisboa? Tem que ver com a afinação e o formato. A guitarra de Lisboa termina com um caracol, a de Coimbra com uma lágrima. O formato da guitarra de Lisboa é mais arredondad­o, o de Coimbra é mais em pera. E são duas formas de tocar completame­nte diferentes. A guitarra de Coimbra é afinada um tom abaixo da de Lisboa, fica um som mais grave, mais dolente, enquanto a de Lisboa é mais aguda. Mas não há diferença nas cordas. Há poucas mulheres a toar guitarra portuguesa, lembro-me só da Luísa Amaro, companheir­a do Carlos Paredes. Há a Luísa Amaro e há agora uma rapariga nova que é a Marta Pereira da Costa, gravou um disco. Não há nenhuma razão especial, mas poucas mulheres se dispõem a estudar a guitarra. Gosta mais de tocar a solo ou de acompanhar fadistas? Gosto das duas coisas. Tocar a solo é recente, embora o fizesse em casa e nos concertos, quando fazia um ou dois instrument­ais. É mais complicado estar a tocar uma hora sozinho, mais assustador. São prazeres diferentes. Acompanhar também é maravilhos­o, fantástico e difícil. O que é bom no acompanhar? É a conversa com o cantor, as dinâmicas que se criam, é caminhar ao lado. Já tocou com todos os grandes fadistas atuais. Tem de se adaptar a cada um ou são eles que se adaptam? Tenho de adaptar-me à forma de cada um cantar. É complicado: não perdendo a nossa caracterís­tica de tocar, ir ao encontro do que o cantor precisa, da forma de acompanhar aquela pessoa. Como se percebe isso? São muitos anos de experiênci­a. A primeira pessoa que acompanhou foi a sua mãe. Era difícil de acompanhar? Não, era muito fácil, ela cantava muito bem. Tem discos gravados? Tem, mas ainda em vinil e cassetes. No meu disco, tenho um tema dela

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O guitarrist­a quis ser fotografad­o no Jardim de São Pedro de Alcântara, uma enorme panorâmica sobre Lisboa. Vive na Ericeira, mas quis estar perto do Bairro Alto, onde tudo começou, embora hoje o bairro já não lhe agrade como antes
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