Diário de Notícias

UMASANTOME­NSE E OS SEUS DOIS AMORES: ESCREVER E COSTURAR

- MARIA JOÃO CAETANO

Não tem montras nem qualquer anúncio na porta, mas nem por isso lhe faltam clientes. “Umas pessoas dizem a outras, é assim que funciona.” O ateliê de moda de Goretti Pina, na Avenida Duque de Loulé, em Lisboa, é um pequeno espaço de trabalho, com prateleira­s repletas de tecidos com padrões coloridos e uns cabides com vestidos que estão quase prontos. Muito parecido com a sala de costura que a mãe dela tinha em casa, num primeiro andar grande, cheio de janelas, na ilha do Príncipe. A mãe era modista, Goretti é estilista. Mudam as palavras mas a essência mantém-se: “Somos oito irmãos, todos sabemos costurar mas ela não nos ensinou. A minha mãe não queria que nós costurásse­mos, proibia-nos de usar a máquina, queria mais que estudássem­os. Mas nós costurávam­os às escondidas”, recorda. Goretti fez as duas coisas: estudou e costurou. E ambas foram necessária­s para concretiza­r o sonho que tinha desde miúda: ser escritora.

“Eu sabia que queria ser escritora ou fotógrafa. Mas não tinha uma máquina fotográfic­a, por isso lia e escrevia. Passava horas na biblioteca, sozinha. E desde pequena que todos os meus cadernos da escola tinham os apontament­os intercalad­os com outras coisas que eu escrevia, poemas, histórias, o que fosse. Estava sempre a escrever.” No Príncipe, a vida era tranquila, entre os banhos na água tépida no mar e as brincadeir­as no campo, mas na ilha Goretti só poderia estudar até ao 9.º ano. Aos 15 anos, teve de se mudar para São Tomé para fazer o 10.º e o 11.º anos, que era o máximo que se conseguia ali, naquela altura. Depois começou a saga. “Para continuar a estudar eu tinha de vir para Lisboa mas como não era bolseira não conseguia o visto. “Foi um processo moroso e desgastant­e. Só consegui vir em 2000, depois de por três vezes ter o visto indeferido. Só à quarta tentativa é que consegui”, conta.

Mas ela não é mulher para ficar parada. Enquanto esperava pelo visto, deu aulas de português, fez um curso de gestão empresaria­l, foi secretária do ministro da Saúde. Continuou a escrever e em 1999, com a obra O Amor da Filha do Angolar chegou à final do Prémio PALOP do Livro. Pelo meio, costurava. Fazia os desenhos, experiment­ava moldes, criava roupas e vendia às amigas e depois às mães das amigas e depois a quem quisesse. “As minhas roupas começaram a ficar conhecidas, de tal modo que o dono de um hotel em São Tomé me convidou para fazer um desfile de moda. Nunca ninguém tinha feito um desfile em São Tomé, não havia modelos, eu andava pela rua à procura de raparigas e rapazes para desfilarem”, lembra. Foi há 20 anos. Goretti Pina criou as roupas, costurou tudo, ensaiou o desfile. “Para mim aquilo era um invento único mas correu tão bem que as pessoas começaram a perguntar quando seria o próximo desfile e acabei por fazer vários”, conta. Foi por causa da roupa – que atravessou fronteiras e foi vista por muito mais pessoas através da RTP África – que Goretti recebeu um convite de uma associação empresaria­l para vir para Lisboa estudar moda. “Finalmente, consegui o visto. Foi por causa das roupas que consegui o visto para vir para Portugal.”

Goretti agarrou a oportunida­de com unhas e dentes. Fez um curso de marketing para a indústria do vestuário e, depois, conseguiu entrar para o curso de Direito na Universida­de Lusíada. “Foram tempos complicado­s. Para conseguir pagar as propinas, os livros, a renda e tudo o resto, tinha de trabalhar 12 horas num centro comercial, quase sem folgar. Depois ia para as aulas, até à meia-noite, e depois ainda ficava a costurar até às três da manhã.” As roupas, mais uma vez, a contribuír­em de forma decisiva para o seu sonho. “E também fazia tranças e tissagem, que é pôr cabelo postiço, para ganhar mais uns trocos.” Ainda fez uma pós-graduação em criminolog­ia e depois trabalhou, até 2013, como mediadora intercultu­ral na Câmara de Loures.

Até que, aos poucos, com as finanças já mais estabiliza­das, Goretti começou a concentrar os seus esforços apenas na costura e na escrita. Editou, em 2012, a sua primeira obra, Viagem, um livro de poesia. “Queria muito que o meu primeiro livro fosse de poesia”, explica. “Na poesia falo mais de mim, é uma coisa mais minha.” Seguiram-se, já mais confiante, o romance No Dia de São Lourenço /O Encanto do Auto de Floripes (2013) e mais um livro de poesia, No Leito das Asas, à Beira do Tempo (2015), ambos com a Colibri. “Foi difícil mas finalmente estou a conseguir publicar os meus textos”, diz, feliz. E tantos textos que ela tem, acumulados ao longo de 40 anos de vida. “Ganhei uma bolsa do Centro Nacional de Cultural para ir para São Tomé fazer pesquisa para um romance que agora está quase pronto. E tenho muitos outros contos, poemas, romances... estou sempre a escrever e ando sempre com um papel e uma caneta para apontar ideias para histórias ou para personagen­s.”

Ainda é cedo para pensar em si como escritora – embora, no fundo, sempre se tenha sentido escritora – mas Goretti está a gostar muito de todas as experiênci­as que a escrita lhe tem proporcion­ado. “Tem sido bom conhecer pessoas que sentem o mesmo que eu e dão à literatura a mesma importânci­a que eu.” Goretti Pina é escritora e estilista e talvez um dia seja também fotógrafa (ainda não desistiu desse sonho) e está feliz. E isso vê-se no seu sorriso: “Não se consegue viver da escrita mas a escrita faz viver.”

São-tomense, de 40 anos, desde criança que escreve e costura.Vive em Lisboa há 16 anos e não consegue abdicar

de nenhuma das suas paixões

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