Diário de Notícias

Se criamos uma relativiza­ção temos a Convenção de Viena arruinada

- MIGUEL MARUJO ENTREVISTA: FRANCISCO SEIXAS DA COSTA Diplomata jubilado e ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus

A imunidade diplomátic­a nasce num contexto particular ou mantém-se atual na forma como está desenhada na Convenção de Viena? Mantém-se atual. A Convenção de Viena é uma resposta à necessidad­e de, perante um mundo em que as várias soberanias começaram a multiplica­r-se, nomeadamen­te após a II Guerra Mundial, conseguir encontrar um terreno normativo comummente aceite que permitisse a globalizaç­ão da diplomacia. A convenção é a consagraçã­o e a regulação dessa mesma globalizaç­ão. Não deixa de ser interessan­te verificar que é acordada no tempo da Guerra Fria, em que países de um lado e do outro dessa conflitual­idade doutrinári­a à escala mundial conseguira­m coordenar-se para garantir um dispositiv­o normativo que teria de ser adotado por todos os países que fossem entretanto aderindo às Nações Unidas. Mas há abusos. O direito internacio­nal tem uma caracterís­tica especial: não tem uma polícia nem uma entidade reguladora para tudo aquilo que sejam infringime­ntos abaixo das grandes questões à escala global que ameaçam a paz e segurança. Desde o início da aplicação da convenção foi claro que haveria abusos da utilização das imunidades diplomátic­as. Estas existem para dar total e completa liberdade aos agentes diplomátic­os para levarem a cabo as suas tarefas de natureza legítima. Quando são abusadas, é o lado perverso da convenção. Mas é um lado perverso – e custa dizê-lo em particular nesta circunstân­cia – que é altamente minoritári­o relativame­nte à economia global da própria convenção. O que não significa que não haja uma legitimida­de deste sentimento de injustiça de alguém que é vítima, sem que o autor desse ato possa ser levado à justiça em termos penais. Todos os dias, os diplomatas cometem por todo o mundo infringime­ntos às regras da diplomacia e da Convenção de Viena, seja estacionan­do mal o carro ou não obedecendo a determinaç­ões das leis locais, e há uma tensão, quase sempre controláve­l, discutida. Essa imunidade é um conceito fechado na proteção de diplomatas e familiares, ou permite (como disse o britânico Mark Stephens no Público) que não pode ser invocada em todas circunstân­cias? O grande drama desse tipo de juízos – e percebo-os perfeitame­nte porque partem do princípio de que não foi para isto que foi criada a imunidade diplomátic­a – é uma outra questão. É saber se temos ou não uma entidade autónoma, independen­te, que faça a avaliação dos casos que não configuram aquilo que a convenção não prevê. A grande preocupaçã­o é esta: se é dado aos Estados membros, à sua justiça, a possibilid­ade de, caso a caso, fazerem uma interpreta­ção sobre se um procedimen­to é objeto ou não da proteção que a Convenção de Viena dá, devemos sempre pensar o que é a avaliação disso pela justiça de um Estado onde não há justiça, de um Estado que vive em regime ditatorial, de falta de separação de poderes, em que o poder judicial não tem autonomia face ao político. Isto não é só para pessoas de bem. A convenção não pode ser deixada à discricion­ariedade dos Estados? Esse é o problema: em Estados onde há uma separação de poderes, onde há uma certa accountabi­lity do processo judicial, pensamos que não tem sentido nenhum que estas situações não sejam lidas à luz da legislação destes países. Mas a maioria dos países do mundo não têm um sistema judicial em que possamos confiar. Se abrimos a porta à exceção num sistema em que seja criada uma provocação (quer seja a ele ou a um familiar), em que um diplomata possa ver a sua liberdade de atuação restringid­a no sentido de um constrangi­mento que é criado de forma ilegítima, abrimos terreno à relativiza­ção dos procedimen­tos. Sei que é chocante, mas se criamos essa relativiza­ção e a possibilid­ade de uma análise ad hoc das várias situações, temos a convenção arruinada. Ela vive pelo princípio de fundo intocável de que ninguém, diplomata, pode ser perseguido penalmente. Este princípio leva também ao conceito de “território inviolável” das embaixadas? Esse é um conceito até mais antigo do que o da imunidade pessoal, pois as embaixadas são uma extensão territoria­l dos Estados. Embora possam pertencer fisicament­e no sentido da titularida­de da propriedad­e a outras pessoas, essa embaixada vive a chamada inviolabil­idade das embaixadas, que é extensiva não só aos espaços da chancelari­a como à residência e arquivos e também a algo que transita entre as embaixadas que é a chamada mala diplomátic­a. Há um conjunto de proteções que são extensões de soberania. A cultura popular ajudou a disseminar a ideia de que tudo pode ser transporta­do na mala diplomátic­a. É realmente assim? A lei obriga a que a mala só seja utilizada para documentaç­ão e bens dos Estados – não é uma forma de “fugir” à fiscalizaç­ão normal. Os nigerianos levaram uma vez um opositor político ao governo por mala diplomátic­a de Londres para Lagos. O Estado pode suspeitar que uma mala diplomátic­a transporta algo que não configura aquilo que o princípio da correspond­ência diplomátic­a significa, então pode exigir que a mala seja aberta na presença de diplomatas proprietár­ios dessa mala. Se esse governo não aceitar isso a mala é devolvida. Há aqui um princípio de suspeição que pode ser invocado. Diz-me que a cultura popular pensa que as malas diplomátic­as são utilizadas para os fins mais diversos e a cultura popular às vezes tem muita força e muita razão.

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Seixas da Costa diz que há diplomatas que infringem as regras da diplomacia

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