Se criamos uma relativização temos a Convenção de Viena arruinada
A imunidade diplomática nasce num contexto particular ou mantém-se atual na forma como está desenhada na Convenção de Viena? Mantém-se atual. A Convenção de Viena é uma resposta à necessidade de, perante um mundo em que as várias soberanias começaram a multiplicar-se, nomeadamente após a II Guerra Mundial, conseguir encontrar um terreno normativo comummente aceite que permitisse a globalização da diplomacia. A convenção é a consagração e a regulação dessa mesma globalização. Não deixa de ser interessante verificar que é acordada no tempo da Guerra Fria, em que países de um lado e do outro dessa conflitualidade doutrinária à escala mundial conseguiram coordenar-se para garantir um dispositivo normativo que teria de ser adotado por todos os países que fossem entretanto aderindo às Nações Unidas. Mas há abusos. O direito internacional tem uma característica especial: não tem uma polícia nem uma entidade reguladora para tudo aquilo que sejam infringimentos abaixo das grandes questões à escala global que ameaçam a paz e segurança. Desde o início da aplicação da convenção foi claro que haveria abusos da utilização das imunidades diplomáticas. Estas existem para dar total e completa liberdade aos agentes diplomáticos para levarem a cabo as suas tarefas de natureza legítima. Quando são abusadas, é o lado perverso da convenção. Mas é um lado perverso – e custa dizê-lo em particular nesta circunstância – que é altamente minoritário relativamente à economia global da própria convenção. O que não significa que não haja uma legitimidade deste sentimento de injustiça de alguém que é vítima, sem que o autor desse ato possa ser levado à justiça em termos penais. Todos os dias, os diplomatas cometem por todo o mundo infringimentos às regras da diplomacia e da Convenção de Viena, seja estacionando mal o carro ou não obedecendo a determinações das leis locais, e há uma tensão, quase sempre controlável, discutida. Essa imunidade é um conceito fechado na proteção de diplomatas e familiares, ou permite (como disse o britânico Mark Stephens no Público) que não pode ser invocada em todas circunstâncias? O grande drama desse tipo de juízos – e percebo-os perfeitamente porque partem do princípio de que não foi para isto que foi criada a imunidade diplomática – é uma outra questão. É saber se temos ou não uma entidade autónoma, independente, que faça a avaliação dos casos que não configuram aquilo que a convenção não prevê. A grande preocupação é esta: se é dado aos Estados membros, à sua justiça, a possibilidade de, caso a caso, fazerem uma interpretação sobre se um procedimento é objeto ou não da proteção que a Convenção de Viena dá, devemos sempre pensar o que é a avaliação disso pela justiça de um Estado onde não há justiça, de um Estado que vive em regime ditatorial, de falta de separação de poderes, em que o poder judicial não tem autonomia face ao político. Isto não é só para pessoas de bem. A convenção não pode ser deixada à discricionariedade dos Estados? Esse é o problema: em Estados onde há uma separação de poderes, onde há uma certa accountability do processo judicial, pensamos que não tem sentido nenhum que estas situações não sejam lidas à luz da legislação destes países. Mas a maioria dos países do mundo não têm um sistema judicial em que possamos confiar. Se abrimos a porta à exceção num sistema em que seja criada uma provocação (quer seja a ele ou a um familiar), em que um diplomata possa ver a sua liberdade de atuação restringida no sentido de um constrangimento que é criado de forma ilegítima, abrimos terreno à relativização dos procedimentos. Sei que é chocante, mas se criamos essa relativização e a possibilidade de uma análise ad hoc das várias situações, temos a convenção arruinada. Ela vive pelo princípio de fundo intocável de que ninguém, diplomata, pode ser perseguido penalmente. Este princípio leva também ao conceito de “território inviolável” das embaixadas? Esse é um conceito até mais antigo do que o da imunidade pessoal, pois as embaixadas são uma extensão territorial dos Estados. Embora possam pertencer fisicamente no sentido da titularidade da propriedade a outras pessoas, essa embaixada vive a chamada inviolabilidade das embaixadas, que é extensiva não só aos espaços da chancelaria como à residência e arquivos e também a algo que transita entre as embaixadas que é a chamada mala diplomática. Há um conjunto de proteções que são extensões de soberania. A cultura popular ajudou a disseminar a ideia de que tudo pode ser transportado na mala diplomática. É realmente assim? A lei obriga a que a mala só seja utilizada para documentação e bens dos Estados – não é uma forma de “fugir” à fiscalização normal. Os nigerianos levaram uma vez um opositor político ao governo por mala diplomática de Londres para Lagos. O Estado pode suspeitar que uma mala diplomática transporta algo que não configura aquilo que o princípio da correspondência diplomática significa, então pode exigir que a mala seja aberta na presença de diplomatas proprietários dessa mala. Se esse governo não aceitar isso a mala é devolvida. Há aqui um princípio de suspeição que pode ser invocado. Diz-me que a cultura popular pensa que as malas diplomáticas são utilizadas para os fins mais diversos e a cultura popular às vezes tem muita força e muita razão.