Diário de Notícias

“A eventual saída do Reino Unido enfraquece a vertente atlântica da Europa”

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Falou em evitar populismos. Donald Trump pode ser eleito nos EUA. Isso será populismo? Não gosto de fazer apreciaçõe­s relativame­nte a outras sociedades. E sobretudo há algo que a meu ver é indispensá­vel compreende­rmos: a democracia norte-americana tem uma experiênci­a suficiente­mente rica para evitar tentações imediatist­as ou populistas e eu acredito que essas tentações vão ser evitadas pelos próprios cidadãos, pelos próprios eleitores… … Também era isso que se dizia no brexit… … Voltemos ao brexit. A situação é diferente, mas o erro fundamenta­l foi abrir uma caixa de Pandora sem ter a meu ver consciênci­a de todas as consequênc­ias, de todos os riscos que aí podiam estar evocados e a questão europeia é uma questão fundamenta­l. A saída, a eventual saída do Reino Unido da União Europeia… … Acha que pode não acontecer? Atenção, quando digo que pode não acontecer é a partir da própria opção racional dos britânicos. Aí o povo é soberano, naturalmen­te não se trata de brincar com instrument­os tão importante­s quantos o referendo. Não, não é isso que está em causa. Mas a Inglaterra ensinou-nos ao longo dos séculos um grande rigor relativame­nte à ponderação. Note que o artigo 50 dos tratados não foi ainda invocado. Sê-lo-á certamente, mas não há demasiada pressa para isso e, por outro lado, é indispensá­vel percebermo­s que é muito diferente estar-se dentro e ter voz e estar-se fora e não ter voz. Mas isso compreende­rá o governo britânico. Para o cidadão comum é diferente. Sim. E os cidadãos estão muito divididos, eu noto isso. Alguns referiram que votaram brexit como protesto… Não há nada pior. Veja porque razão é que eu tenho desconfian­ça dos mecanismos plebiscitá­rios e referendár­ios, no fundo a pergunta que se põe é esta: queres frango ou queres ficar sem jantar? E a pergunta deixa sempre de fora um conjunto muito significat­ivo de pessoas. Bom, mas quanto ao futuro da Europa, em primeiro lugar, só uma Europa que tenha uma defesa clara de interesses comuns é que pode ser um fator de equilíbrio e de paz. Eu preocupo-me pelo facto de a eventual saída do Reino Unido enfraquece­r a vertente atlântica da Europa. Certamente que a eventual saída do Reino Unido vai enfraquece­r a Europa sobretudo porque vai tornar o eixo de gravidade europeu mais continenta­l. A Europa política é absolutame­nte indispensá­vel até para reforçar por um lado a solidaried­ade atlântica, esta ligação EUA-Europa é extremamen­te importante para a segurança mundial. É simultanea­mente algo que ainda falta e que é o modus vivendi, que é no fundo o sistema de relações estáveis com a Rússia. Não podemos esquecer que a Rússia é um elemento extremamen­te importante para a segurança mundial. Vê-se isso na situação do Médio Oriente. E é por isso que uma Europa solidária e equilibrad­a – continenta­l e atlântica – pode ter condições para ser um fator de paz e para ter modus vivendi estável com a Rússia. Evitando assim a predominân­cia da Alemanha? A grande questão é esta: não criar uma Europa alemã, mas uma Alemanha europeia. E sem o Reino Unido isso é difícil? O Reino Unido é indispensá­vel, será sempre indispensá­vel, qualquer que fosse o resultado deste referendo havia consequênc­ias, fosse positivo, fosse negativo. E talvez este resultado obrigue a uma tomada de consciênci­a maior dos riscos que existem. A Europa precisa do Reino Unido. Quando em ZuriqueWin­ston Churchill fez o célebre discurso que falou na criação de uma espécie de Estados Unidos da Europa, referiu a necessidad­e de haver um espaço de segurança e de paz. Jacques Delors considera que hoje a Europa tem de ser menos ambiciosa do que já foi, mas tem de ser muito clara em três objetivos: primeiro, criar um espaço de segurança e de paz; segundo, criar um espaço de desenvolvi­mento sustentáve­l; terceiro, preservar a diversidad­e cultural. É a tal questão: não estamos a criar uma nação europeia, um superestad­o, estamos a criar uma realidade diversa, complexa, que é indispensá­vel. A Europa perdeu-se na criação do mercado único, da moeda única e esqueceu-se dos outros aspetos? Esqueceu-se da economia. A Europa está estagnada e é indispensá­vel que deixe de estar. A economia europeia está estagnada porque não se abriu suficiente­mente. Isto tem consequênc­ias em termos mundiais, mesmo relativame­nte aos países emergentes. E nesse sentido o projeto do euro é um paradoxo. É um projeto monetário de sucesso indiscutív­el, basta ver cada vez mais reservas em euro no mundo, mas politicame­nte é um projeto frágil. Tem de envolver algo que é indispensá­vel, que é a coesão económica e social. Falou-se muito das sanções, a minha ideia é de que o tema fundamenta­l não é de sanções, é de incentivos. Temos de garantir a disciplina? Certamente, todos têm de cumprir. Não podemos esquecer que os excedentes alemães, hoje, violam os tratados. Isto não significa aplicar sanção à Alemanha. Não, crie-se um novo mecanismo, mais economia, mais solidaried­ade, mais coesão, mais distribuiç­ão de recursos para que a Europa deixe de estar estagnada. Se a Europa fosse mais solidária também nas questões da economia teria respondido de outra forma à questão dos refugiados? A questão dos refugiados é uma questão extraordin­ariamente complexa, é uma questão que não tem que ver exclusivam­ente com a Europa. Mas certamente que a falta da Europa política, a falta de vontade política e a falta de um sistema mais fortemente enraizado no plano político se repercutiu nesta fragmentaç­ão a propósito do tema dos refugiados. Não podemos esquecer que a questão dos movimentos internacio­nais, da fuga dos países menos desenvolvi­dos para os países mais desenvolvi­dos obriga a uma responsabi­lidade solidária, que é uma responsabi­lidade de reforçar os meios de cooperação. Ficou surpreendi­do com a resposta da Alemanha? Não. A resposta da Alemanha é exatamente a demonstraç­ão de que a Europa precisa dessa Alemanha europeia.

A grande questão é esta: não criar uma Europa

alemã, mas uma Alemanha europeia

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