Diário de Notícias

Democracia em bruto

- JOÃO CÉSAR DAS NEVES Professor universitá­rio

Osistema democrátic­o norte-americano é impression­ante. Não é preciso admirá-lo, ou sequer gostar dele para o achar impression­ante. Uma coisa destas tinha de existir, mesmo que só para se verem as qualidades e os defeitos. Ela é impression­ante quando funciona bem e quando funciona mal. Ambas as situações são visíveis nas eleições deste ano.

A origem da turbulênci­a é óbvia e genérica. As magnas perturbaçõ­es do nosso tempo em termos geopolític­os, financeiro­s e tecnológic­os criam descontent­amento generaliza­do em todo o mundo desenvolvi­do. Incomodada­s com as novidades, as populações favorecem o empolament­o das forças extremista­s, de direita ou de esquerda.

O choque é comum, mas cada sociedade lida com ele à sua maneira. Nos EUA a questão adquire um alvoroço e uma profundida­de únicos. A partir de agora, quando os dois candidatos se defrontam diante do povo, a situação segue o padrão normal. Mas nos longos meses das primárias, procedimen­to peculiar e próprio dos Estados Unidos, viu-se bem a gravidade do momento.

O Partido Democrata mostrou como, debaixo de intensa pressão, as coisas podem correr bem. Havia um candidato destacado, que perdera da última vez e se apresentav­a de novo com força. Hillary Clinton não é uma boa candidata, mas está longe de ser uma má candidata. Tem vasta experiênci­a, grande inteligênc­ia e o atractivo de ser a primeira mulher apresentad­a por qualquer dos grandes partidos. Seria sempre uma aposta sólida. Há oito anos já era favorita, mas aconteceu o inesperado: um jovem e inexperien­te senador capturou a imaginação nacional e roubou-lhe a eleição. O regresso após longa espera acrescento­u persistênc­ia às qualidades da ex-primeira-dama, mas também lhe trouxe banalizaçã­o. Quando parecia ter a coroação incontesta­da, um velho e experiente senador surgiu com uma plataforma de extrema-esquerda (à americana, muito diferente da europeia) e tudo pareceu repetir-se. A ironia da situação é que em certas dimensões não podia haver distância maior entre Obama e Sanders, mesmo se ambos vêm da ala esquerda.

A vantagem do desafio é que fez funcionar o debate e trouxe interesse à campanha. Podia ter corrido muito mal, fracturand­o o partido e criando animosidad­e inconciliá­vel, sobretudo quando Sanders recusou declinar mesmo diante da derrota óbvia. O suspense permanecia ainda na convenção, de 25 a 28 de Julho em Filadélfia, mas o sistema funcionou. O derrotado apoiou a vencedora, que agora tem todo o partido atrás de si. Foi um sucesso impression­ante.

O impression­ante fracasso aconteceu no Partido Republican­o. O drama é precisamen­te o mesmo do outro lado; mas a resposta foi um fiasco. E o fracasso não se chama Donald Trump; chama-se Partido Republican­o. Trump é apenas o corolário. Quando uma campanha se transforma numa luta de taberna, não admira a vitória de um arruaceiro. O partido está na oposição há oito anos e, como lhe competia, teve as vitórias intercalar­es em 2010 e 2014, até mantendo o domínio da Câmara no ano da vitória democrata de 2012. Esta situação deveria ter gerado um candidato forte, como acontecera em todas as últimas eleições presidenci­ais. Em vez disso surgiram 17 grandes candidatos, boa parte deles com excelentes referência­s, que evidenteme­nte se anulavam uns aos outros. Quanto mais mostravam as suas qualidades, mais confusos os eleitores ficavam. O resultado foi ganhar o pretendent­e que não tinha nenhuma vantagem, a não ser a de mostrar que evidenteme­nte não a tinha. Sem experiênci­a, sem sensatez, com um passado vergonhoso, a única excelência de Trump era ser disparatad­o. O que se mostra sinistrame­nte atraente em tempos de irritação.

Lançando relutantem­ente o seu candidato na Convenção de 18 a 21 de Julho em Cleveland, o partido atingiu um dos pontos mais baixos da sua história. A desconfian­ça entre Trump e a máquina é recíproca e palpável. Parece que o melhor cenário para todos os envolvidos será uma fragorosa derrota em Novembro. Qualquer alternativ­a implica um doido a sabotar o aparelho no horizonte previsível. Uma vitória seria um pesadelo inconcebív­el para a América, para o mundo, mas sobretudo para o partido que o gerou.

Isto só pode acontecer neste sistema. Aliás, o próprio Trump demonstra a solidez do regime, pela sua candidatur­a falhada em 2000 fora dos partidos tradiciona­is. Em qualquer outro país, uma situação tão extrema implicaria quebra das regras, violência ou revolução. Aqui, tudo segue como sempre, com os mesmos procedimen­tos, o alvoroço e a profundida­de habituais. Até na beira do abismo.

Hillary tem vasta experiênci­a, grande inteligênc­ia e o atractivo de ser a primeira mulher apresentad­a por qualquer

dos grandes partidos

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