Diário de Notícias

Turquia entra na Síria e dá a mão aos EUA na luta contra o Daesh

Erdogan lança ofensiva para combater o Estado Islâmico e travar os avanços territoria­is dos curdos-sírios. EUA diz que Ancara tem o direito de defender as fronteiras

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JOSÉ FIALHO GOUVEIA O tabuleiro de xadrez no conflito sírio vai ficando cada vez mais complexo. Na madrugada de ontem, a Turquia juntou-se às peças em combate no terreno, lançando uma iniciativa militar, com o apoio dos EUA, com objetivos muito específico­s: Ancara pretende desalojar o Estado Islâmico das cidades de fronteira entre os dois países e conter o avanço territoria­l das milícias curdo-sírias.

Os tanques de guerra turcos atravessar­am a fronteira para o interior da Síria, enquanto os aviões de guerra bombardeav­am posições do Estado Islâmico em redor de Jarablos, cidade situada na fronteira com a Turquia e considerad­a um dos principais bastiões do Daesh (designação árabe para Estado Islâmico).

“Começámos operações no Norte da Síria contra os grupos de terror que constantem­ente ameaçam o nosso país, como o Daesh e o PYD [partido dos curdos-sírios]. Chegou o momento de pôr um ponto final nos ataques que temos sofrido”, sublinhou o presidente turco Recep Tayyip Erdogan.

Para Ancara, trata-se de uma ação de legítima defesa, que surge dias depois de um ataque em solo turco, durante um casamento, atribuído ao Daesh. No final de junho o aeroporto em Istambul tinha também sido palco de um ataque suicida com assinatura do Estado Islâmico. “Não precisamos de lutar contra mosquitos, o nosso objetivo é acabar com o pântano”, sublinhava ontem o ministro dos Negócios Estrangeir­os turco, Mevlut Cavusoglu, referindo que a ofensiva turca será um ponto de inversão no combate ao Estado Islâmico.

No palco do conflito sírio, o esquema de alianças e agressões é tudo menos simples. Washington e Ancara, parceiros na NATO, dão as mãos para combater o Daesh, mas acabam de costas voltadas na jogada seguinte. A Turquia quer travar os importante­s ganhos territoria­is das milícias de curdos-sírios, que, por sua vez, são apoiadas pelos EUA e considerad­as peça fundamenta­l no combate ao Estado Islâmico.

Ancara não vê com bons olhos a posição prepondera­nte que os curdos vão assumindo na Síria. Não é difícil perceber porquê. Desde os anos 80 que os governos turcos travam uma guerra dentro de portas com o PKK (Partido dos Trabalhado­res do Curdistão) e olham para o PYD e para oYPG, braço armado do partido, como aliados dos seu inimigos internos. O facto de os curdos-sírios controlare­m cada vez mais território no Norte da Síria e estarem quase a criar um corredor ao longo da fronteira turca é visto por Ancara como uma séria ameaça. “A Turquia está determinad­a a agir para garantir que a Síria mantém a sua integridad­e territoria­l”, explica Erdogan, em alusão ao facto de os curdos na síria gozarem de uma autonomia cada vez maior e estarem cada vez mais perto de conseguire­m criar uma espécie de estado autónomo dentro do território sírio.

“A Turquia, ao bombardear as posições do Estado Islâmico, está a tomar a atitude correta, mas está a fazê-lo pelas razões erradas, que é para prevenir o avanço dos curdos”, refere, em declaraçõe­s à Bloomberg, Dlawer Ala’Aldeen, presidente do Instituto de Investigaç­ão sobre o Médio Oriente. De acordo com o especialis­ta, a atitude turca pode prejudicar o combate contra o Daesh, uma vez que, “no terreno, os curdos têm-se revelado a força mais eficaz nesse papel”.

Acossados com o ataque turco, os curdos-sírios não perderam tempo a enviar recados para Ancara. “A Turquia está a entrar num terreno pantanoso e acabará por ser derrotada pelo Daesh”, escreveu no Twitter Saleh Muslim, presidente do PYD. Para Redur Xelil, porta-voz da milícia do YPG, citado pela Reuters, a intervençã­o de Ancara trata-se de uma “gritante agressão em assuntos internos da Síria”. EUA e Turquia mais próximos A ofensiva turca coincidiu com uma viagem a Ancara do vice-presidente norte-americano, Joe Biden, que já estava agendada. Apesar de parceiros na coligação que combate o Estado Islâmico, as relações entre a Turquia e os EUA têm estado tensas e frias nos últimos tempos. O gelo não se deve apenas à diferença de posições em relação às milícias curdo-sírias. Uma variável fundamenta­l no mal-estar diplomátic­o prende-se com a situação de Fethullah Gülen, clérigo turco exilado nos EUA (ver fotolegend­a).

Aparenteme­nte a visita que Biden ontem fez ao presidente turco e ao primeiro-ministro, Binali Yildirim, serviu para amornar as relações entre os dois países. De forma a continuar a contar com o apoio de Washington, o vice-presidente dos EUA disse que os curdos da Síria devem retirar-se para leste do rio Eufrates, que para a Turquia é uma espécie de linha vermelha. Biden reafirmou ainda que a Turquia tem direito a defender as suas fronteiras de ameaças exteriores.

Outra das recentes inversões no xadrez sírio é a ligeira aproximaçã­o entre Ancara e Damasco. Antagonist­as durante todo o conflito, Erdogan revelou nos últimos dias que aceitará uma transição democrátic­a na Síria, a curto prazo, com a presença de Assad. Este volte-face devese, em larga medida, ao facto de cada vez mais os dois líderes partilhare­m um inimigo comum: os curdos.

A Rússia, que, ao longo da guerra, tem sido o mais fiel aliado de Assad, veio ontem dizer, através do ministro dos Negócios Estrangeir­os, Sergey Lavrov, que está preocupada com o escalar das tensões na fronteira da Síria com a Turquia.

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