Partido da trumpa
“Trump pode não ser o candidato do partido republicano que gostaríamos que existisse, mas é quem melhor encaixa naquilo em que o GOP se tornou: um partido da trumpa”
O discurso galvanizador que Ronald Reagan imprimiu à campanha de 1980 levou muitos democratas a apoiá-lo contra Jimmy Carter, o presidente em exercício. Com uma receita onde juntava menos impostos, limites ao governo federal e reforço da segurança nacional, Reagan apelou então aos cinco sentidos americanos: um porto de abrigo certo na Casa Branca, mais firmeza nas decisões, melhores equilíbrios constitucionais, recuperação económica e otimismo no futuro.
Esses eleitores democratas não se reviam na brandura de Carter em pleno pico da Guerra Fria (invasão soviética do Afeganistão e a crise dos reféns no Irão dos ayatolah), ilustrando também uma classe trabalhadora sensível a propostas menos flexíveis na imigração, e que ficaram conhecidos por Reagan democrats, espelhando o alargamento da plataforma que daria a vitória ao antigo governador da Califórnia com 489 votos no colégio eleitoral (Carter teve 49), recuperando a maioria republicana no Senado perdida desde 1952. Hoje, já se apelida de Clinton republicans aos que não se reveem em Trump, no caminho do GOP e estão dispostos a votar em Hillary. A questão que me parece interessante discutir não é se Clinton vai alcançar os números de Reagan (claramente utópico) ou mesmo se esses republicanos descontentes serão decisivos em estados como a Florida, Ohio, Pensilvânia e Carolina do Norte, mas antes perceber porque chegou o partido republicano a Trump.
É preciso dizer que tanto os democratas como os republicanos já sofreram transformações profundas na sua matriz política e foram obrigados a reinventarse várias vezes nas últimas décadas. Basta lembrar os anos 1960 e 1970 e toda a contracultura nas sociedades ocidentais, dos traumas doVietname às lutas pelos direitos civis e à emergência de uma resolução racial, e que, por exemplo, alimentaram as políticas públicas neoconservadoras antes de o seu discurso em política externa ter tido no senador democrata Henry Scoop Jackson o expoente de uma corrente que influenciaria as administrações Reagan, Clinton e Bush filho. Desde essa altura, ambos os partidos passaram pelo conservadorismo de Barry Goldwater, o liberalismo de George McGovern, os New Democrats de Bill Clinton, ou o estado de guerra de GeorgeW. Bush, respostas às mutações demográficas, étnicas e ideológicas dos Estados Unidos e do seu próprio enquadramento estratégico internacional. O que talvez seja novo no quadro partidário atual, sobretudo republicano, é a duração da irredutibilidade para assumir uma alteração de agenda política. É que se o GOP perder em novembro pode ficar 16 anos fora da Casa Branca, a mais longa travessia no deserto da sua história, logo após os vinte anos que separaram os presidentes Hoover e Eisenhower (1933-1953). Afinal, o que tem contribuído para tamanha cristalização identitária?
Desde logo, a incapacidade em acompanhar a evolução demográfica americana e de construir uma agenda que vá ao seu encontro sem cair no radicalismo e no medo do eleitor branco. Além disto, foi gradualmente aceite que a excessiva polarização do debate político garantia vitórias para o Congresso, onde os republicanos têm hoje maioria nas duas câmaras, raciocínio que, na ausência de um republicano na Casa Branca, era o melhor para bloquear legislação e prosseguir radicalizando. Este “programa” assentava em três ideias-chave: assumir o discurso antissistémico do Tea Party como narrativa do partido no Congresso; ser um fator de bloqueio institucional e legislativo permanente a uma agenda progressista; e incitar ao ódio contra democratas (Obama à cabeça) e apoiantes numa lógica de capitalização do aprofundamento das fraturas sociais em plena recessão económica e retração da administração na política internacional (terrorismo, acordos comerciais, intervenções militares).
No fundo, a leitura que os vencedores desta estratégia republicana fizeram foi esta: quando Obama chegou os democratas tinham o controlo da Câmara dos Representantes e do Senado, quando sai é o GOP quem tem as duas maiorias. O que falta? Isso, eleger um presidente que reflita o sucesso deste programa de contínua radicalização discursiva, tensão institucional, ódio ao adversário, afeto por teorias da conspiração, insurgência constitucional, rejeição do compromisso, simplismo manipulatório da mensagem, negação da ciência e irredutibilidade com a mudança social. Trump pode não ser o candidato do partido republicano que gostaríamos que existisse, mas é quem melhor encaixa naquilo em que o GOP se tornou: um partido da trumpa.